Entrevista
Entrevista a Bernardo Trindade, presidente da Associação da Hotelaria de Portugal
18 June 2025
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«O Estado precisa de promover uma relação de confiança, transparência e estabilidade com as empresas»


Bernardo Trindade é uma das personalidades que melhor conhece o turismo do nosso país.  O líder da maior associação hoteleira de Portugal aborda os diversos desafios que se colocam ao setor: o recrutamento de mão de obra, a carga fiscal, a sustentabilidade e os constrangimentos aeroportuários. Inscrito na OCC há mais de 25 anos, salienta «o papel absolutamente determinante» da instituição no sucesso das empresas, em especial graças ao «trabalho de descodificação e, muitas vezes de desdramatização» desenvolvido pelos contabilistas certificados.


Contabilista – O número de turistas que nos visitam continua a subir de ano para ano. Quais são as perspetivas para o presente ano turístico?

Bernardo Trindade – Felizmente para o setor os registos, ano após ano, têm sido superados. Significa por isso que a relação de confiança entre quem nos visita e o produto que preparamos tem sido bem conseguido e bem construído. Mérito para todos os que compõem a enorme família do setor. O sentimento dos nossos associados é de que 2025 será moderadamente positivo. O primeiro trimestre esteve muito alinhado com o ano transato. Abril, coincidindo com a Páscoa, foi ligeiramente melhor e estima-se que o verão seja um pouco melhor que o período estival de 2024. Em síntese, se 2025 não for melhor, será muito equiparado com o ano anterior que foi só o melhor de sempre.

 

 O fator sazonalidade está a mostrar uma tendência de redução?

Esse é um tema que varia de região para região, mas há uma tendência de  que o efeito da sazonalidade no país, de uma forma geral, se ter esbatido. Na Madeira, praticamente, não existe. O Algarve tem uma sazonalidade que se inicia em novembro e termina, por norma, em março. Nos centros urbanos, como Lisboa e Porto, a sazonalidade sente-se, particularmente, em dezembro, janeiro e fevereiro.

 

Para além da saturação em período de pico, têm-se verificado constrangimentos nos controlos de fronteiras nos aeroportos de Lisboa e Faro, especialmente nas chegadas de voos de fora do espaço europeu/Schengen.  Situações desta natureza podem ser um desagradável cartão de visita associado à marca Portugal?

A dificuldade nas entradas por via aérea em Portugal é o principal desafio para este verão, em particular nos aeroportos de Lisboa e Faro. O Aeroporto Humberto Delgado está profundamente constrangido com severos condicionamentos nos mecanismos de entrada de passageiros – O número de boxes disponíveis não chega, a que acresce o facto de os sistemas automáticos de acesso, nomeadamente o «RAPID», que valida os passaportes eletrónicos, disporem, neste momento, de um software que não é compatível e nos aeroportos de Porto e Faro encontram-se mesmo inoperacionais. Para conseguir escoar todas as pessoas que demandam Portugal em busca de uns dias de lazer, precisamos de dotar estas infraestruturas aeroportuárias de meios técnicos e humanos para que esta primeira experiência no nosso país não seja traumatizante. Seria desencorajador, quando ao mesmo tempo o setor turístico tudo faz para tornar o mais atrativa possível esta experiência.

 

A AHP é a maior associação patronal da indústria hoteleira do país, contando com mais de 950 associados. Disse na tomada de posse para mais um mandato na associação que «ainda existe muita desinformação e muito ataque vil ao nosso setor do turismo». Quer concretizar?

Os números são o que são e demonstram uma realidade e um efeito inexorável. O efeito turístico é, para além disso, democrático, visto que é sentido em todo o país. O setor turístico é a atividade económica mais importante e que mais entrega ao país - 28 mil milhões de euros de receita. Temos cerca de meio milhão de pessoas a trabalhar no setor. O que está em causa é que nomeadamente os residentes têm, de alguma maneira, de sentir os efeitos positivos da atividade turística. Isto implica por parte de todos os agentes do setor um trabalho permanente de aproximação. Na minha opinião, os equipamentos que existem nas nossas cidades (higiene urbana, monumentos, etc.) e que são financiados pela taxa turística coletada por mais de 60 municípios portugueses, devem ter um selo a informar que o investimento nesta infraestrutura foi financiado pelos turistas que nos visitam. Seria uma forma de diminuir o fosso entre turistas e residentes.

 

Enquanto isso não for feito corremos o risco, como diz, de banalizar a aplicação de taxas turísticas?

Deve haver um compromisso nacional para que exista clareza na mensagem que é transmitida. Nós, hoteleiros, que cobramos a taxa turística, estamos disponíveis para trabalhar com os municípios neste esforço de divulgação. Só passando uma mensagem clara será possível esbater alguma animosidade que possa haver com o turismo. São os hoteleiros que cobram e entregam o produto da taxa aos municípios, sendo que estes fazem a gestão dos montantes arrecadados. Acredito que, num exercício de humildade, devia ser constituído um fundo de desenvolvimento turístico com a participação das autarquias, dos hoteleiros e dos restaurantes. E que daí surgisse um bom debate e uma melhor decisão e aplicação das taxas. Infelizmente, este objetivo só foi conseguido em Lisboa. Mas tudo faremos para que se alargue ao restante país.

 

O que é que pode fazer o Estado para disponibilizar instrumentos financeiros mais adequados às necessidades do setor?

A autoridade turística nacional – o Turismo de Portugal – é dotada de verbas próprias, mas que devem ser articuladas com fundos provenientes das autarquias como a taxa turística para que, em conjunto, possamos ter, de facto, uma oferta de qualidade que se sinta em todo o país. Considero que o essencial é que se verifique a aplicação harmoniosa destas verbas para o desenvolvimento do setor turístico.

 

Falou há pouco da necessidade de reduzir o fosso entre residentes e turistas. Não teme que, se nada for feito, tenhamos nas grandes cidades portuguesas, à semelhança do que já aconteceu em destinos   mais saturados, manifestações e protestos contestando o que dizem ser a massificação turística?

É precisamente esse potencial cenário que queremos esbater, através de uma mensagem clara e transparente sobre os reais benefícios do setor para a vida em sociedade. Nomeadamente, como atrás referi, nas receitas arrecadadas pela taxa turística e as suas implicações no dia a dia as pessoas. A questão da higiene urbana, por ser tão sensível, seria um bom exemplo de como determinado equipamento, financiado pela taxa turística, está agora ao serviço das populações, numa qualquer freguesia das nossas cidades.

 

Como reage aos críticos que apontam que o modelo económico nacional está demasiado dependente do setor turístico? Devia haver vida para além do turismo, como alguns defendem?

A nossa economia tem vida para além do turismo, mas também há algo inexorável que importa não ocultar: o turismo tem sido a principal alavanca que fez Portugal, nos últimos anos, crescer acima da média da União Europeia. Sobre as declarações a que aludiu, entendo que elas revelam algum desconhecimento. Pensemos numa unidade hoteleira, que tem quartos e restaurantes, e em todos esses espaços existe um conjunto vastíssimo de mobiliário feito de produção nacional da nossa indústria. Já nos restaurantes temos a ligação ao setor agrícola – sim, porque os turistas também comem e bebem. Em resumo, em resultado da afirmação do setor turístico há outros setores de atividade do país que também crescem. Igualmente aqui acho que há um problema de falta de informação, que acaba por levar a um esgrimir de argumentos sem base de sustentação. Os hoteleiros têm de continuar a trabalhar com grande responsabilidade, de forma estreita com outros setores de atividade e com as diversas regiões do país. O turismo é e continuará a ser uma aposta de futuro para o país.

 

Em Portugal existem entre 450 e 500 mil pessoas a trabalhar no setor do turismo – dois terços portugueses e um terço estrangeiros. Admite que em breve os imigrantes serão a maioria?

O turismo é uma atividade de mão de obra intensiva e, por isso, necessita de pessoas. Já não nos bastamos a nós próprios e precisamos de mão de obra estrangeira. Os hotéis e os restaurantes podem ser lindos, mas se não houver quem preste serviço em número suficiente, a atividade fica muito condicionada. Já não havendo portugueses ou pessoas oriundas dos PALOP para certas atividades, temos de ir procurar pessoas de outras nacionalidades para as fazer. No imediato, é preciso fazer um equilíbrio entre a mão de obra nacional e estrangeira que se recruta de modo a garantir que toda a fileira do turismo na hotelaria possa ficar preenchida com pessoas para as tarefas requeridas, cientes de que este é um processo muito dinâmico. Há um caso muito curioso que gostaria de partilhar e que acontece num dos nossos hotéis, em Lisboa. Um colaborador nepalês começou como cozinheiro de terceira e hoje é cozinheiro de primeira. Quer continuar a aperfeiçoar a sua formação para estabelecer o seu próprio negócio. Este é o exemplo de uma oportunidade que estamos a construir.

 

A questão da integração nos nossos hábitos e na língua é uma preocupação na forma de recrutamento dos recursos humanos?

Estas pessoas têm de se adequar à nossa cultura, à nossa forma de estar e ao modo como interagimos uns como os outros em comunidade. Mesmo uma pessoa que trabalhe na cozinha de um hotel, pode não ter a necessidade de se relacionar com o cliente, mas o produto do seu trabalho vai ser avaliado por um cliente exigente. Em Portugal fala-se muito do processo de imigração, mas até parece que nos esquecemos que já fomos (e ainda somos) um povo de emigrantes.

 

 Um travão à captação de imigrantes paralisaria o setor hoteleiro?

Paralisaria o setor hoteleiro e até a própria economia portuguesa. As palavras são do próprio governador do Banco de Portugal, Mário Centeno. Ainda há uns dias ele voltou a dizer que se dispensarmos esta mão de obra estrangeira, não cresceremos economicamente.

 

O novo aeroporto de Lisboa e o TGV que ligará Lisboa a Madrid só estarão operacionais, no melhor cenário possível, em 2031. Estes investimentos estruturantes que continuam por concretizar são desvantagens competitivas que impactam, sobretudo, o turismo?

Inevitavelmente, porque os nossos turistas proveem de mercados que exigem uma ligação aérea a Portugal. Ter uma infraestrutura aeroportuária com condicionamentos é uma desvantagem comparativa face a outros países. E, para ser franco, 2031 é uma perspetiva muitíssimo otimista. Por isso, é que temos advogado pelo lançamento de uma campanha de aumento da estadia média em Portugal.  O objetivo seria passar de 2,51 dias de permanência média, para 3,51 dias de permanência média, o que se traduziria que os mesmos 31 milhões de hóspedes em vez de 80 milhões de dormidas fossem 114 milhões de dormidas. Para alcançar esta meta seria importante termos o apoio de todos. Já sobre a ferrovia, é algo inaceitável. Não devemos nada em matéria turística face a Espanha, mas esta incapacidade de resposta em sede de acessibilidades acaba por nos penalizar relativamente aos nossos vizinhos da Península Ibérica.

Portugal pretende afirmar-se como um destino competitivo, moderno e eficiente. Como é que o turismo, e em particular, o setor da hotelaria está a enfrentar o desafio da sustentabilidade?

O setor da hotelaria está completamente comprometido com o desafio da sustentabilidade. Este é o tema do futuro e a que os hotéis têm de se adequar. Temos um programa corporativo de responsabilidade social de sustentabilidade ambiental, denominado «HEART», que ao longo da última década teve oportunidade de doar mais de duas centenas de milhares de bens a um conjunto vastíssimo de instituições particulares de solidariedade social – são cerca de 200 IPSS ligadas ao «HEART». As unidades hoteleiras são um modelo de negócio que, periodicamente, têm de se renovar e remodelar ao nível dos equipamentos. O que faz com que equipamentos como uma mesa, uma cadeira ou uma cama tenham uma segunda vida e uma outra utilidade, ajudando instituições e adequando os equipamentos a um novo tipo de consumo. Temos cerca de 50 por cento dos nossos associados a doarem bens na plataforma «HEART». Isto é um exemplo concreto de uma prática sustentável. Continuaremos, por isso, o esforço de dotar de uma maior sensibilidade a nossa força de trabalho e proporcionar uma boa educação e formação aos nossos empresários, de modo a que, também ao nível da sustentabilidade, sejamos uma atividade líder.

 

Já aqui falamos de fiscalidade na abordagem à taxa municipal turística. Agora que o tema da reforma do Estado volta a estar na ordem do dia, de que forma o prometido agilizar da burocracia e de procedimentos pode favorecer o setor?

Esse é um tema absolutamente central na captação de investimento. Se tivermos confiança e sentirmos previsibilidade por parte das instituições públicas, estamos a criar condições para que o investimento prossiga em Portugal. O objetivo da simplificação, não é de agora, já vem de outros governos, mas é de extrema atualidade. Atualmente, quer a Autoridade Tributária (AT), quer a Segurança Social (SS) já dispõem de um conjunto de informação muito detalhada sobre a atividade dos agentes económicos. Ao nível do preenchimento declarativo ambas as entidades já têm um manancial imenso de informação, o que lhes permite o cruzamento dos dados disponíveis e a redução da carga administrativa e burocrática que ainda é requerida às empresas.  Nesse sentido, o apelo que fazemos é que se prossiga o esforço de simplificar e, a partir daqui, o Estado precisa de promover uma relação de maior confiança, transparência e estabilidade com as empresas, para que este ciclo de investimento tenha seguimento. Hoje, estão criadas as condições para que possamos criar uma relação de confiança entre o Estado e os agentes económicos.

 

O setor cobra a taxa turística, mas tem o reverso da medalha de sobre si recaírem vários tributos. Como classificaria o nível de carga fiscal?

O setor hoteleiro paga muitos, muitos tributos. Quer ao nível dos impostos diretos, quer ao nível dos impostos indiretos, quer ao nível da responsabilidade perante a SS, enquanto entidade patronal, isto sem esquecer os impostos municipais, que também têm peso na nossa estrutura de despesa.

 

Apesar de não exercer, cumpriu recentemente 25 anos de inscrição na OCC. Como agente económico, como vê o papel da instituição e dos seus profissionais?
Esta instituição desempenha um papel absolutamente determinante no sucesso das empresas. E não me refiro apenas ao trabalho que recai sobre os profissionais. Refiro-me, em particular, ao trabalho de descodificação, de desdramatização muitas vezes, que deve ser feito no sentido de que todas as iniciativas, algumas das quais também em sede de Orçamento do Estado, sejam explicadas da forma tecnicamente mais correta e percetível para todos. Se, como disse anteriormente, o Estado construir uma relação de confiança com as empresas, estou em crer que os profissionais sairão, também eles, beneficiados.

 

Apesar do percurso no dirigismo associativo e na política, que ensinamentos da profissão ainda hoje usa no dia a dia como gestor e empresário?

A formação base da profissão é absolutamente essencial. E quero recordar que no início da minha carreira tive ainda uma passagem pela consultora KPMG, no âmbito da auditoria. A vida é cada vez mais o resultado de um percurso e da soma de conhecimentos, experiências e aprendizagens, bem como dos contactos que travamos com muitas pessoas com saberes diversos. No fundo, é isso que nos faz pessoas e cidadãos melhores, comprometidos com a comunidade que nos envolve. Este é um propósito de vida que sempre cultivei.

Foi secretário de Estado do Turismo durante seis anos.  Desde 2005 que não temos um Ministério do Turismo. No recém-empossado executivo, na tutela da Economia e Coesão Territorial, o turismo coexiste com o comércio e serviços. É suficiente?

É uma excelente pergunta, mas gostaria de olhar para ela na perspetiva do copo meio cheio. A começar pelo facto de Pedro Machado se ter mantido à frente da pasta. É bom, porque ele conhece o setor. Num quadro de absoluta lealdade, vamos continuar a ajudá-lo, elogiando o que está bem e alertando para o que pode ser corrigido. Do ponto de vista da arquitetura do governo, é importante o turismo estar dentro da tutela económica, mas deve, sobretudo, estar interligado com a dimensão do território, das infraestruturas e também da cultura. Se assim for continuaremos a alimentar o sonho de afirmar o turismo português.



Entrevista Nuno Dias da Silva | Fotos Raquel Wise


Entrevista publicada na Revista Contabilista n.º 301 disponível em versão online aqui

PERFIL

Bernardo Trindade é «um madeirense nascido em Lisboa», a 4 de maio de 1970. Foi recentemente reeleito para o segundo mandato na Associação da Hotelaria de Portugal. É ainda presidente do conselho estratégico do Turismo do Porto e Norte de Portugal. Exerceu funções públicas, primeiro como deputado na Assembleia Legislativa da Madeira, de 2000 a 2005, e depois como secretário de Estado do Turismo, no XVI e XVII governos constitucionais, entre 2005 e 2011, tendo sido responsável pela criação do Turismo de Portugal e pela reforma e reorganização espacial das Regiões de Turismo. Entre junho de 2017 e junho de 2021, foi também administrador não-executivo da TAP. É administrador do Grupo PortoBay Hotels & Resorts, com 17 hotéis em diferentes geografias (Madeira, Lisboa, Algarve, Porto e Brasil). Foi distinguido, o ano passado, com o Prémio Nacional de Turismo na categoria "Personalidade". Foi agraciado pelo Presidente da República como “Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique”

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