PT 23185 – Liquidação de sociedade
06-08-2019
Determinada sociedade terá de ser liquidada "com urgência". No entanto, no balanço está evidenciada uma dívida a um fornecedor. Segundo a gerência desta entidade, essa dívida não existe, uma vez que todas as faturas foram liquidadas. Não chegou à contabilidade qualquer comprovativo para o pagamento destas faturas. Foi solicitado ao fornecedor um extrato de conta corrente para conferência e, se aplicável, a correção do valor registado na contabilidade. Não houve resposta.
O sócio desta entidade não pretende assumir a responsabilidade desta dívida. Pretende que o contabilista salde o fornecedor. Contudo, esse movimento não pode ser feito porque não há qualquer prova das diligências evidenciadas. Num caso com estes contornos, caso as diligências tenham mesmo sido feitas e a sociedade envie prova das mesmas, esta serve de suporte para eliminar o saldo no fornecedor com a justificação de ausência de resposta?Parecer técnico
A questão colocada refere-se ao tratamento contabilístico e fiscal da dissolução e liquidação de uma sociedade comercial, com dívidas a pagar a credores, reconhecidas no balanço à data da dissolução.
Os procedimentos para extinguir uma sociedade são a dissolução e liquidação da sociedade previstas nos artigos 141.º a 165.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
Os principais conceitos e procedimentos subjacentes às operações de dissolução e liquidação das sociedades podem dividir-se em três partes:
- Dissolução;
- Liquidação;
- Partilha do ativo remanescente.
A dissolução é o ato que determina o início do procedimento da extinção da sociedade, que, quando for de iniciativa dos sócios, pode ser decidido em assembleia geral de sócios, convocada para o efeito, por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social, a não ser que o contrato exija maioria mais elevada ou outros requisitos (artigo 270.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) para as sociedades por quotas e artigo 464.º do mesmo Código para as sociedades anónimas).
Nesse momento, tem que se preparar e apresentar as demonstrações financeiras à data da decisão da dissolução, conforme artigo 149.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), que estarão devidamente identificadas na ata da assembleia geral, com o objetivo de se apresentar o património da sociedade a ser objeto de liquidação.
Este balanço não tem qualquer impacto a nível fiscal, sendo objeto de tributação o período até e após a dissolução. A determinação da data de dissolução apenas pode ser relevante para efeitos fiscais, para estabelecer o início do período de liquidação, que pode ser objeto de uma única tributação em IRC, nos termos do artigo 79.º do Código de imposto.
LiquidaçãoApós a deliberação de dissolução, a sociedade entra na fase de liquidação durante a qual decorrem as operações que consistem, na realização (venda, afetação externa e cobrança) do ativo e pagamento do passivo, com o objetivo de reduzir a dinheiro ou bens facilmente realizáveis para serem partilhados.
O CSC prevê dois procedimentos simplificados de liquidação nos artigos 147.º e 148.º.
Nos termos do artigo 147.º do CSC, o momento da dissolução pode coincidir com o momento da liquidação e partilha, que pode ser efetuado através do procedimento de «dissolução e liquidação na hora».
O Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, instituiu um regime de «dissolução e liquidação na hora» para as sociedades comerciais, permitindo que se extingam e liquidem imediatamente, num atendimento presencial único, nas conservatórias de registo comercial, quando determinados pressupostos se verifiquem.
Na secção IV do «Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais», em anexo ao Decreto-Lei n.º 76-A/2006, estão definidos os procedimentos especiais de extinção imediata de entidades comerciais.
Estes procedimentos referem a obrigatoriedade do cumprimento de duas condições para que se possa efetuar a dissolução e liquidação imediata de uma sociedade comercial, nomeadamente que a mesma seja requerida, por qualquer pessoa, com poderes fornecidos pelo órgão de administração ou outro membro da sociedade, apresentando uma ata de assembleia geral que comprove a deliberação unânime nesse sentido tomada por todos os membros da entidade comercial.
O outro requisito fundamental é que, na referida ata da assembleia geral, os sócios têm que atestar a não existência de ativos ou passivos a liquidar.
Estes documentos podem ser substituídos por declarações verbais efetuadas presencialmente por algum dos sócios da sociedade ou do órgão de administração, perante o funcionário da conservatória, conforme o n.º 3 do artigo 27.º do referido Regime Jurídico de Dissolução e Liquidação.
Após este requerimento, documental ou verbal, a conservatória procede de imediato à decisão de dissolução e liquidação da sociedade, efetuando oficiosamente e de imediato o registo simultâneo da dissolução e do encerramento da liquidação, e entregando a respetiva certidão do registo comercial atualizada com o encerramento da liquidação.
Por outro lado, a conservatória procede de imediato e oficiosamente, também, à comunicação desse encerramento da liquidação a diversas entidades, nomeadamente à Autoridade Tributária e Aduaneira, Segurança Social e outros, conforme artigo 26.º do referido Regime Jurídico.
Com o registo do encerramento da liquidação, a sociedade é considerada como extinta.
No entanto, no caso de existirem ações pendentes, essas instâncias não se suspendem, ou no caso de existirem ativos não partilhados ou passivos não satisfeitos, após esse encerramento da sociedade, os antigos sócios podem ter que responder por tais factos, sendo da responsabilidade do liquidatário a resolução e comunicação aos sócios de tais situações, conforme os artigos 162.º a 164.º do Código das Sociedades Comerciais.
Por outro lado, o artigo 148.º do CSC prevê que a liquidação e partilha se possam efetuar através da transmissão global do património (ativos e passivos) para os sócios, passando estes a ter o direito de recebimento das dívidas a receber e a obrigação da liquidação das dívidas a pagar da sociedade. No caso da cedência das dívidas a pagar da sociedade tem que ser obtido o consentimento dos credores da sociedade por escrito.
Quando os sócios não deliberarem pela aplicação destes procedimentos simplificados, ou tal não for possível, têm que se efetuar os procedimentos normais de liquidação previstos no CSC, nomeadamente: vender os bens do ativo, cobrar os créditos da sociedade e proceder-se ao pagamento das dívidas da sociedade, como o objetivo de reduzir a dinheiro o património residual para este ser partilhado pelos sócios.
Estes procedimentos devem ser efetuados por um liquidatário, cuja nomeação deve também constar da ata que deliberou a dissolução, conforme artigo 151.º e 152.º do CSC.
Partilha do ativo remanescenteNos procedimentos de liquidação, inclui-se ainda a partilha do ativo restante, quando este existir, pelos sócios, de acordo com as respetivas participações e deliberações tomadas em sede de assembleia geral.
Este ativo restante é destinado em primeiro lugar ao reembolso do montante das entradas efetivamente realizadas pelos sócios, sendo que se não existir ativo suficiente para efetuar esse reembolso, ou se se registar um excesso, estes devem ser distribuídos pelos sócios na respetiva proporção das suas participações.
Estas contas finais dos liquidatários devem ser efetuadas num mapa de partilha, sendo proposto o projeto de partilha para ser aprovado pelos sócios, nos termos do artigo 155.º e 156.º do CSC.
A liquidação deve estar encerrada e a partilha aprovada no prazo de dois anos, prorrogável no máximo por mais um ano. Não se cumprindo esse prazo o serviço de registo pode determinar que as mesmas sejam feitas administrativamente, conforme disposto no artigo 150.º do CSC.
Finalmente, a sociedade considera-se extinta pelo registo do encerramento da liquidação, na Conservatória do Registo Comercial, conforme o n.º 2 do artigo 160.º do CSC, conforme já referido.
Com a extinção da sociedade, dada pelo registo do encerramento da liquidação, na Conservatória do Registo Comercial, a sociedade considera-se cessada para efeitos de IRC, nos termos do n.º 5 do artigo 8.º do CIRC.
No caso em concreto, a sociedade tem ainda passivos à data da dissolução, nomeadamente dívidas a pagar a credores, pretendendo proceder à dissolução e liquidação da sociedade.
De referir que a existência de dívidas a pagar a terceiros por liquidar não impede a realização do encerramento da liquidação, e por conseguinte a extinção da sociedade, com a exceção das dívidas fiscais e à Segurança Social que não podem ser sub-rogadas.
Efetivamente, nos termos do artigo 163.º do CSC, ainda que tenha sido efetuado o encerramento da liquidação e a extinção da sociedade, as dívidas a pagar pela sociedade não se extinguem, respondendo os sócios por essas dívidas, até ao montante que receberam da partilha.
Por outro lado, essas dívidas a pagar da sociedade podem ser sub-rogadas aos sócios antes de iniciado o procedimento de dissolução e liquidação.
Efetivamente, a cedência de créditos é uma operação comum que se traduz na transmissão de um direito – direito ao recebimento do valor em dívida – encontrando-se prevista e regulada nos termos do artigo 577.º e seguintes do Código Civil.
A transmissão das dívidas a pagar da sociedade para os sócios exige a ratificação do credor, conforme estabelecido no artigo 595.º do Código Civil.
A transmissão gratuita das dívidas a pagar da sociedade para o sócio é considerada como um rendimento para a sociedade, sendo classificada como um perdão de dívida na esfera da sociedade, e registada na conta 788 – «Outros rendimentos e ganhos – outros».
O rendimento associado a este perdão de dívida deve ser tributado na esfera do IRC, conforme previsto no artigo 20.º do CIRC.
Se existir, ou prevendo-se que venha a existir, um processo judicial para a liquidação da dívida a pagar ao fornecedor, deve aferir-se os condicionalismos legais para fazer face a esse processo.
As dívidas a pagar a credores são reconhecidas no balanço da sociedade, quando cumpram a definição de passivo financeiro nos termos da norma contabilística e de relato financeiro (NCRF) n.º 27 – Instrumentos financeiros.
A NCRF 27 – Instrumentos financeiros estabelece os conceitos dos ativos financeiros, passivos financeiros e instrumentos de capital próprio emitidos pela entidade, determinando que um passivo financeiro é um passivo que resulte de uma obrigação contratual de entregar dinheiro ou outro ativo financeiro a uma outra entidade, para além de outras situações aí previstas.
As entidades devem reconhecer os passivos financeiros, quando estes se tornarem uma parte das disposições contratuais do instrumento financeiro, como por exemplo, pela aquisição de bens ou serviços para o exercício ordinário da atividade.
Em termos de desreconhecimento, o parágrafo 34 da NCRF 27 estabelece que os passivos financeiros, tais como as dívidas a pagar a fornecedores e outros credores, devem ser retirados do balanço da entidade apenas quando estes se extinguirem, isto é, quando a obrigação estabelecida no contrato seja liquidada, cancelada ou expire.
Desta forma, as dívidas a pagar a fornecedores são desreconhecidas (retiradas do balanço) habitualmente quando forem liquidadas, ou seja, forem pagas aos respetivos credores pela própria entidade.
Todavia, também podem acontecer outras situações mais atípicas que levem ao desreconhecimento das dívidas a pagar aos fornecedores, como por exemplo, quando estas sejam perdoadas (ainda que parcialmente).
Em termos contabilísticos, o perdão do pagamento da dívida a pagar ao fornecedor ou outro credor deve resultar no desreconhecimento do passivo financeiro por contrapartida do reconhecimento de rendimentos, conforme previsto no parágrafo 90 da estrutura conceptual do SNC.
O reconhecimento direto em capitais próprios apenas poderia ser efetuado caso a NCRF 27 previsse tal procedimento, o que de facto não sucede.
Pelo desreconhecimento de uma dívida a pagar ao fornecedor, em resultado do plano de recuperação do PER, o registo contabilístico pode ser:
- Débito da conta 221 – Fornecedores c/c por contrapartida a crédito da conta 786x – Ganhos em perdão de dívidas (sugestão de conta), pelo montante total ou parcial da dívida a pagar.
Em termos de IRC, os rendimentos reconhecidos no período referentes ao desreconhecimento da referida dívida a pagar estão sujeitos a este imposto, conforme previsto na alínea i) do n.º 1 do artigo 20.º do Código desse imposto.
No caso em concreto, há que aferir se as dívidas a pagar em causa devem manter-se reconhecidas no balanço, e assumidas imediatamente pelos sócios, ou se pode efetuar o desreconhecimento do balanço, conforme referido acima.
Esse desreconhecimento das dívidas a pagar aos credores deve ser titulado com algum documento comprovativo, nomeadamente uma informação específica e concreta do credor a confirmar a inexistência da dívida.
Caso não exista tal documentação, se a entidade obtiver outros meios de prova pode efetuar tal desreconhecimento.
Se, em última análise, não existir qualquer evidência objetiva, idónea e inequívoca que a dívida já foi liquidada, esta deve manter-se reconhecida no balanço da dissolução, podendo ser cedida para a esfera dos sócios, nos termos referidos acima.
Ainda que seja efetuado o desreconhecimento da dívida a pagar ao credor, se após o encerramento da liquidação, existir a reclamação do pagamento pelo credor, os sócios liquidatários assumem esse montante até à concorrência do valor obtido na partilha, nos termos previstos no artigo 163.º do CSC.