Opinião
Ordem nos media
Os deficientes e a justiça fiscal
17 November 2006
Artigo de Domingues de Azevedo, presidente da CTOC

                                                                                   

 

Muito se tem falado e provavelmente continuará a falar da proposta do Orçamento de Estado para 2007.

Aquele documento é uma verdadeira «Bíblia» que orienta e rege os comportamentos do Governo perante os cidadãos e a sociedade, com especial enfoque para as questões relacionadas com a estratégia económica e fiscal.

É, pois, uma espécie de compromisso que orienta e enquadra a vida societária durante o período de tempo em que se aplica, constituindo-se também, não obstante a contingentação, que, pela sua própria natureza e função está sujeito, como o elemento mais fiável de orientação dos cidadãos sobre os seus deveres de cidadania.
Não constitui novidade para ninguém que a cultura de cidadania vigente em muitos países de origem latina, diverge profundamente de outras culturas europeias, tendo-lhe normalmente associado o papel que os governos vêm desempenhando junto dos cidadãos, criando nestes convicções profundas conducentes, não só à aceitação, mas também ao respeito pelo cumprimento dos deveres dos sujeitos passivos perante a comunidade em que vivem e que colectivamente lhes proporciona situações de conforto, segurança, educação, saúde e bem-estar.
A discussão dos deveres de cidadania nestas culturas, muito embora todos tenhamos consciência que o pagamento de impostos empobrece o seu pagador, faz-se, não baseado numa cultura de «chico-espertismo», mas mais baseada nos méritos ou deméritos das decisões e dos efeitos que elas têm na vida dos cidadãos.
A nossa Comunicação Social enaltece o sensacionalismo e menospreza ou até omite a discussão racional sobre estes temas.
É neste contexto que a propósito de algumas medidas contidas na proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2007, lemos nos jornais títulos sensacionalistas tais como "Orçamento cruel», «aumento da carga fiscal para os reformados e deficientes», fazendo um verdadeiro apelo prático para que as notícias sejam interiorizadas pelos seus títulos e não pelo seu conteúdo, cultivando, por essa via, julgamentos infundados quanto à matéria a que se aplicam.
Paradigma do que se afirma é o novo quadro fiscal enquadrador da tributação das pessoas portadoras de grau de deficiência superior a 60 por cento.
Antes de mais, assinale-se que ter a infelicidade de por efeito de deficiência genética ou adquirida, ver-se reduzido nas suas capacidades físicas é a maior penalização que qualquer cidadão pode ter.

O quadro jurídico aplicável aos cidadãos portadores de grau de deficiência superior a 60 por cento, consistia no direito que se reconhecia àqueles de ver deduzidos aos seus rendimentos obtidos por conta de outrem uma quantia correspondente a 50 por cento dos valores auferidos.
A existência de mecanismos que procurem pela via fiscal compensar o que a natureza negou ou as circunstâncias retiraram das capacidades físicas ou psíquicas dos cidadãos, acho completamente justificável e até louvável.

A forma como o quadro actual produz essa compensação, não pode de forma alguma merecer a concordância de pessoas que cultivem valores de equidade fiscal.
Menosprezando alguns abusos conhecidos do recurso imerecido do mecanismo, penso que ele deve envergonhar os cidadãos portadores de deficiência, pois, quando se pretende introduzir uma compensação, está-se, na verdade, a contemplar situações de verdadeira injustiça fiscal.

Quais as razões que justificam que cidadãos portadores do mesmo tipo e nível de deficiência sejam tratados tão diferenciadamente pelo sistema em vigor?
Dois cidadãos que, por infortúnio da sorte, se vejam desprovidos, por exemplo, da sua mão direita, em que um tenha uma remuneração mensal de 2 500 euros e outro tenha uma remuneração mensal de 500 euros, pela mesma deficiência um vê deduzido, mensalmente, ao seu rendimento fiscal 1250 euros, enquanto outro vê deduzido

apenas 250 euros. O que é que se passará? Será que a um faz mais falta a mão do que a outro? Se o actual sistema valoriza uma mão, mensalmente a 1250 euros e outra, a 250 euros, o que é que justifica tal diferença?

Que me perdoem os cidadãos que têm a infelicidade de serem portadores de deficiência, mas o mecanismo que é proposto no Orçamento do Estado para 2007, é muito mais justo, pois trata da mesma maneira e com a mesma valorização, a mão do rico e a mão do pobre.

Julgo que as pessoas de bom senso não podem ter, quanto a este processo, uma leitura diferente da que se apresenta, salvaguardadas as situações em que é proibido pensar pela sua própria cabeça.

Se o valor não é adequado para compensar a diminuição da capacidade de angariar rendimentos que a deficiência provoca, então discuta-se esse valor, mas não se menospreze o mérito da medida.

É que perante tantos chavões, tantas frases feitas, parece que alguém ainda cultiva alguma lucidez de espírito esse parece ser o primeiro-ministro.