Entrevista
Erica Pimentel: «A tecnologia é uma oportunidade para tornar a profissão mais atrativa»
5 September 2024
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Este é o timing perfeito para redefinir o significado e o propósito da profissão. A tese é da investigadora canadiana Erica Pimentel, que defende ainda que o julgamento profissional dos contabilistas certificados é «intocável» perante qualquer eventual ameaça proveniente do progresso tecnológico. Para a professora da Queen’s University os profissionais são aquilo a que chama «tradutores de negócios», pelo conhecimento amplo e sólido que possuem sobre uma diversidade de temáticas. 

Contabilista – As suas mais recentes investigações centraram-se no modo como a disrupção tecnológica interfere na forma como os contabilistas e os auditores abordam o seu trabalho. Pode partilhar as principais conclusões a que chegou?

Érica Pimentel – O fio condutor foi encontrar um novo propósito profissional em tempos conturbados e de mudança. O trabalho remoto tratou-se de uma mudança muito recente e implicou uma grande adaptação. Esta profissão não podia ficar parada e sem se adaptar às mudanças. Por isso, esta é, cada vez mais, uma profissão dinâmica e evolutiva. Estamos constantemente a ser confrontados com novos desafios, novas ameaças, novos standards, nova legislação, etc. Mas é esta capacidade de adaptação à mudança que tem de ser salientada e é uma mensagem que procuro passar aos meus alunos.

A pandemia, em particular para contabilistas e auditores, revelou-se um desafio gigantesco…

Sem dúvida. Tivemos de mudar com grande velocidade. Não foi algo completamente novo, porque já existiam investigações e experiências sobre o trabalho remoto desde a década de 90. Mas esta mudança aconteceu do dia para a noite. E no início nem tudo correu bem. Mas aprendeu-se, rapidamente. O trabalho remoto foi uma lição essencial da pandemia, que veio para ficar, e que pela sua maior generalização permitirá atrair mais jovens para desempenharem esta profissão ao perceberem que a tecnologia diminui e facilita o trabalho repetitivo.

«A importância da profissão foi reforçada, especialmente a nossa vertente de business translators (tradutores de negócios). E esta expressão explica-se porque percebemos de negócios, de impostos, de leis e de tecnologia.»

A pandemia reforçou a imagem e o prestígio dos profissionais portugueses. Qual foi o feedback que teve noutras latitudes?

A importância da profissão foi reforçada, especialmente a nossa vertente de business translators (tradutores de negócios). E esta expressão explica-se porque percebemos de negócios, de impostos, de leis e de tecnologia. Quando um governo apresenta um novo Orçamento, quase sempre com novidades fiscais, é preciso alguém que represente a classe para “descodificar” o que há de novo e de que forma vai afetar os cidadãos. Na verdade, todos queremos saber se estas mudanças vão ou não mexer com o nosso bolso. É este ponto que torna a profissão tão valiosa. E é precisamente o combinar de competência técnica, conhecimento, com a simplificação da mensagem que nos torna profissionais tão especiais. Este é o principal fator pelo qual não iremos ser substituídos pela Inteligência Artificial (IA) ou pelo blockchain.  Para além, obviamente, de sermos profissionais confiáveis e credíveis. Os contabilistas e os auditores “vendem” confiança e, por isso, considero que são intocáveis e não poderão ser substituídos pela tecnologia

O cumprimento de standards éticos e deontológicos é determinante para consolidar a credibilidade da profissão. Qual é a receita para lidar com a pressão e os recorrentes dilemas éticos?

Os casos Enron e Worldcom, no início do século, foram muito impactantes e ficaram na memória de muita gente. Isto aconteceu por culpa própria e gerou um sério dano reputacional na imagem e no prestígio da profissão. Não há que atirar culpas para o exterior. Passaram vários anos e ficou a lição de que dependemos só de nós para evitar ou mitigar eventuais problemas, de maior ou menor dimensão, que surjam no domínio ético.  Só conseguiremos restaurar o sentimento de respeitabilidade fazendo o nosso trabalho bem feito. E manter e reforçar a credibilidade é fundamental para continuarmos a “vender” confiança.

Pouco mais de 20 anos passaram sobre esses escândalos. É hoje mais difícil que essas situações se repitam?

Creio que vamos assistir ao mesmo tipo de fraudes, só que em novas áreas. Velhos esquemas, mas com uma embalagem nova por assim dizer, perpetrados numa “arena” tecnológica. Em suma, a fraude não vai ser eliminada, mas será, seguramente, mais difícil de ser praticada, em particular devido ao papel de mitigação da regulação.

O debate sobre o progresso tecnológico e o seu impacto é permanente e está em toda a parte. A sofisticação tecnológica vai ameaçar o futuro da profissão ou permitirá libertar os profissionais para tarefas de maior valor acrescentado?

A tecnologia, nomeadamente a IA e o blockchain, foi o melhor que aconteceu à nossa profissão, porque permitiu demonstrar o quão importante é o julgamento profissional. Com o blockchain é possível monitorizar as operações em tempo real. Mas não sei se essas operações resultam de fraude. É, por isso, fundamental haver uma “tradução” e estabelecer a relação entre as várias operações. A tecnologia vai eliminar tarefas que muitos de nós não gostávamos, como as reconciliações, que não acrescentam grande valor ao processo, mas no essencial acaba é por transformar o propósito e a finalidade da contabilidade. Penso que esta nova dimensão abre caminho para atrair sangue novo para a profissão, com uma grande aposta na especialização. Como professora, verifico que o progresso tecnológico já chegou ao próprio modo como lecionamos e nas minhas aulas já há uma vertente de análise que até há pouco não existia. Em suma, a tecnologia é uma oportunidade de ouro para tornar a profissão mais interessante e atrativa.

Este é o timing perfeito para redefinir o significado e o propósito da profissão?

Absolutamente. Quando comecei minha carreira na EY nunca pensei chegar onde cheguei hoje. Ter sempre em mente, no escritório ou na academia, que tudo o que fazemos (bem feito) é em prol do serviço público deve ser a base para tudo. É aquilo que eu costumo dizer uma chave que nos pode abrir qualquer porta.

Falemos agora do desafio da sustentabilidade. Em Portugal já há PME que ponderam o encerramento confrontadas com as exigências dos critérios de sustentabilidade. Esta espécie de darwinismo no tecido empresarial pode ser entendido como um sinal de alerta?

Acredito que para enfrentar a crise que atravessamos precisamos de empresas de todas as dimensões. Mas confesso que fico menos confortável quando, ao nível da adoção destes critérios de sustentabilidade, os custos superam os benefícios. O essencial é que as PME cumpram os critérios de sustentabilidade, sejam incluídas neste logica de mudança, mas que a prossecução deste objetivo não contribua para o seu “afogamento”. Os custos de compliance são muito elevados e, por vezes, superam os benefícios. Espero, por isso, que esse darwinismo de que fala não seja o desenlace desta mudança.
 

O cumprimento dos critérios de sustentabilidade pode, ao mesmo tempo, ser o seguro de vida e a certidão de óbito para muitas empresas

Sem dúvida. As exigências e os standards de sustentabilidade implicam custos e passos no sentido da inovação, para os quais nem todas as empresas estarão preparados e ficarão para trás. É inevitável. Mas também há novos tipos de negócios que emergem por causa da oportunidade e pelas exigências decorrentes da sustentabilidade. No Quebec, a província do Canadá onde vivo, uma empresa que fabrica autocarros elétricos para transporte escolar é um caso de sucesso, mas conta com o precioso apoio do Estado. É positivo se tivermos serviços e produtos que contribuam para a economia, mas é preciso salvaguardar que muitas empresas não fiquem “submersas” pelas obrigações de compliance.

Atrair e reter talento é um dos grandes desafios das empresas e das profissões. De que forma é que a contabilidade pode ser mais atrativa para as novas gerações? 

Como referi anteriormente, a tecnologia é importante, mas não chega. É preciso passar a mensagem, com clareza, que a contabilidade já não é ficar sentado o dia todo num escritório. Iniciei a minha carreira na EY – apesar de a maior parte do meu percurso profissional ter sido na academia –, mas considero fundamental essa minha experiência de gabinete. Foi uma verdadeira escola que me ensinou a trabalhar no terreno.   Permitiu-me desenvolver valores ao nível do compromisso, respeito pelos prazos, organização, rigor, etc. Esta espécie de certificação é mais importante do que a licença que passamos a ter quando somos admitidos como contabilistas certificados ou auditores e poderá servir de trampolim para uma carreira bem-sucedida. Penso que o cultivar desta filosofia pode ser, também, um meio para atrair as novas gerações.

Fala-se de que existe um movimento chamado de great resignation (grande abandono) na contabilidade. Tem essa perceção? Como combatê-lo?

É uma tendência que está a acontecer nos escritórios e resulta de muitas horas de trabalho, remunerações baixas, etc. Não é isso que as novas gerações querem. Como tal, se queremos atrair os jovens teremos de mudar e de nos adaptarmos. É preciso competir com outras profissões e com start-ups tecnológicas, por exemplo. Alargar o trabalho remoto para os recém-chegados é uma possibilidade que deve ser encarada. No meu tempo isso não era possível, mas a pandemia mudou muitas mentalidades e atitudes.

 

Tal como outras, esta é uma profissão muito exigente. É possível compatibilizar trabalho árduo e qualidade  de vida?

É a pergunta para um milhão de dólares. Adoro trabalhar e lamento dizer: não paro de trabalhar às quatro da tarde. Não esqueço que esta profissão me deu oportunidades incríveis e conforto familiar.  Tenho raízes portuguesas e o meu avô tinha uma exploração agrícola e voou dos Açores para o Canadá em busca de uma vida melhor para a sua família. E esta profissão permitiu-me progredir. No fundo, foi um trampolim para melhorar a minha qualidade de vida. Hoje em dia é uma profissão prestigiada e reconhecida socialmente. 
 

«A tecnologia, nomeadamente a IA e o blockchain, foi o melhor que aconteceu à nossa profissão, porque permitiu demonstrar o quão importante é o julgamento profissional.»

A semana de quatro dias pode, por exemplo, ser um passo em frente para melhorar a qualidade de vida das pessoas?

Penso que será mais uma etapa para prosseguirmos o tal equilíbrio entre vida pessoal e familiar, que as novas gerações tanto ambicionam. Habitualmente, não trabalho à quarta-feira à tarde porque estou a fazer voluntariado na escola meu filho, que tem sete anos. Mas se for preciso recupero essas três horas durante o fim de semana. O meu trabalho não é das 9 às 5.

Trabalhar arduamente é condição única para se ser um bom profissional ou a dimensão da paixão tem de estar sempre associada?

Um profissional sem paixão por aquilo que faz nunca irá muito longe. Quanto estava no liceu queria ser engenheira informática. Depois mudei de ideias. Fui para contabilidade, mas nunca perdendo de vista a área tecnológica. Em suma, foram dois mundos que (felizmente) se cruzaram. A profissão de contabilista, hoje é dia, já não é cinzenta como no passado, fruto da interligação com a tecnologia. Esta mensagem também tem de ser passada, com clareza. E logo a partir da escola e das universidades. Os próprios curricula estão a mudar – vão muito alem do debitar e creditar - e isso é positivo, o que vai permitir aos futuros profissionais ambicionar novos horizontes.

As universidades são a antecâmara da carreira profissional. Qual deve ser o seu papel?

As universidades são a melhor publicidade para os potenciais candidatos à profissão. Temos de captar esta audiência logo no primeiro ano dos cursos com palestras e conferências sobre oportunidades com vista ao seu futuro. Por exemplo, trazer a tecnologia para a sala de aula e colocá-los perante vários case study. No fundo, incentivá-los a «por as mãos na massa», é o caminho a seguir. Os frutos virão.

«As universidades são a melhor publicidade para os potenciais candidatos à profissão. Temos de captar esta audiência logo no primeiro ano dos cursos com palestras e conferências sobre oportunidades com vista ao seu futuro.»

Um pouco por todo o mundo os Estados estão confrontados com o dilema de responderem às necessidades e anseios das populações e ter finanças publicas saudáveis. Onde é que entra o papel do contabilista?

Os profissionais desempenham um papel óbvio nas empresas privadas no âmbito de uma boa governança e na adoção de bons processos financeiros. No setor público a sua tarefa é menos óbvia, mas igualmente determinante. O código fiscal é um instrumento técnico, mas também de política fiscal. E é nesta esfera pública que os contabilistas podem ter grande papel como «tradutores» da realidade financeira. Na província do Quebec, o primeiro-ministro e o ministro da Saúde são ambos contabilistas certificados de formação. É preciso seguir esta tendência e colocar mais profissionais em lugares de decisão política de forma a gerir o interesse público como se gere um qualquer negócio. É o apelo que deixo para concluir: se puderem, envolvam-se e mobilizem-se nas atividades públicas para demonstrar o quão útil podemos ser. 

Entrevista: Nuno Dias da Silva | Fotos: Jorge Gonçalves 

 

PERFIL

O apelido Pimentel não engana. A mãe é italiana, mas as suas raízes paternas estão em Portugal, mais concretamente, em Rabo de Peixe, na Ilha de São Miguel. Erica Pimentel veio em maio passado pela primeira vez ao nosso país, a convite da Ordem, tendo participado na conferência sobre sustentabilidade realizada em Braga. Ficou prometido o regresso, para breve, mas desta vez até ao arquipélago dos Açores. Erica Pimentel é professora assistente na Smith School of Business na Queen’s University, em Kingston (Canadá), onde leciona contabilidade financeira. A sua área predileta de investigação centra-se na forma como a disrupção tecnológica, nomeadamente o trabalho remoto e o blockchain, impactam na forma como os contabilistas e auditores desempenham o seu trabalho.  Tem um doutoramento e mestrado pela Concordia University e uma pós-graduação em impostos pela York University. Antes de enveredar pela carreira académica, exerceu como contabilista e consultora na EY.


Esta entrevista faz parte da edição da Revista Contabilista 292, de agosto de 2024, que pode aceder aqui
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