Este é o timing perfeito para redefinir o significado e o propósito da profissão. A tese é da investigadora canadiana Erica Pimentel, que defende ainda que o julgamento profissional dos contabilistas certificados é «intocável» perante qualquer eventual ameaça proveniente do progresso tecnológico. Para a professora da Queen’s University os profissionais são aquilo a que chama «tradutores de negócios», pelo conhecimento amplo e sólido que possuem sobre uma diversidade de temáticas.
Contabilista – As suas mais recentes investigações centraram-se no modo como a disrupção tecnológica interfere na forma como os contabilistas e os auditores abordam o seu trabalho. Pode partilhar as principais conclusões a que chegou?
Érica Pimentel – O fio condutor foi encontrar um novo propósito profissional em tempos conturbados e de mudança. O trabalho remoto tratou-se de uma mudança muito recente e implicou uma grande adaptação. Esta profissão não podia ficar parada e sem se adaptar às mudanças. Por isso, esta é, cada vez mais, uma profissão dinâmica e evolutiva. Estamos constantemente a ser confrontados com novos desafios, novas ameaças, novos standards, nova legislação, etc. Mas é esta capacidade de adaptação à mudança que tem de ser salientada e é uma mensagem que procuro passar aos meus alunos.
A pandemia, em particular para contabilistas e auditores, revelou-se um desafio gigantesco…
Sem dúvida. Tivemos de mudar com grande velocidade. Não foi algo completamente novo, porque já existiam investigações e experiências sobre o trabalho remoto desde a década de 90. Mas esta mudança aconteceu do dia para a noite. E no início nem tudo correu bem. Mas aprendeu-se, rapidamente. O trabalho remoto foi uma lição essencial da pandemia, que veio para ficar, e que pela sua maior generalização permitirá atrair mais jovens para desempenharem esta profissão ao perceberem que a tecnologia diminui e facilita o trabalho repetitivo.
«A importância da profissão foi reforçada, especialmente a nossa vertente de business translators (tradutores de negócios). E esta expressão explica-se porque percebemos de negócios, de impostos, de leis e de tecnologia.»
A pandemia reforçou a imagem e o prestígio dos profissionais portugueses. Qual foi o feedback que teve noutras latitudes?
A importância da profissão foi reforçada, especialmente a nossa vertente de
business translators (tradutores de negócios). E esta expressão explica-se porque percebemos de negócios, de impostos, de leis e de tecnologia. Quando um governo apresenta um novo Orçamento, quase sempre com novidades fiscais, é preciso alguém que represente a classe para “descodificar” o que há de novo e de que forma vai afetar os cidadãos. Na verdade, todos queremos saber se estas mudanças vão ou não mexer com o nosso bolso. É este ponto que torna a profissão tão valiosa. E é precisamente o combinar de competência técnica, conhecimento, com a simplificação da mensagem que nos torna profissionais tão especiais. Este é o principal fator pelo qual não iremos ser substituídos pela Inteligência Artificial (IA) ou pelo
blockchain. Para além, obviamente, de sermos profissionais confiáveis e credíveis. Os contabilistas e os auditores “vendem” confiança e, por isso, considero que são intocáveis e não poderão ser substituídos pela tecnologia
O cumprimento de standards éticos e deontológicos é determinante para consolidar a credibilidade da profissão. Qual é a receita para lidar com a pressão e os recorrentes dilemas éticos?
Os casos Enron e Worldcom, no início do século, foram muito impactantes e ficaram na memória de muita gente. Isto aconteceu por culpa própria e gerou um sério dano reputacional na imagem e no prestígio da profissão. Não há que atirar culpas para o exterior. Passaram vários anos e ficou a lição de que dependemos só de nós para evitar ou mitigar eventuais problemas, de maior ou menor dimensão, que surjam no domínio ético. Só conseguiremos restaurar o sentimento de respeitabilidade fazendo o nosso trabalho bem feito. E manter e reforçar a credibilidade é fundamental para continuarmos a “vender” confiança.
Pouco mais de 20 anos passaram sobre esses escândalos. É hoje mais difícil que essas situações se repitam?
Creio que vamos assistir ao mesmo tipo de fraudes, só que em novas áreas. Velhos esquemas, mas com uma embalagem nova por assim dizer, perpetrados numa “arena” tecnológica. Em suma, a fraude não vai ser eliminada, mas será, seguramente, mais difícil de ser praticada, em particular devido ao papel de mitigação da regulação.
O debate sobre o progresso tecnológico e o seu impacto é permanente e está em toda a parte. A sofisticação tecnológica vai ameaçar o futuro da profissão ou permitirá libertar os profissionais para tarefas de maior valor acrescentado?
A tecnologia, nomeadamente a IA e o
blockchain, foi o melhor que aconteceu à nossa profissão, porque permitiu demonstrar o quão importante é o julgamento profissional. Com o
blockchain é possível monitorizar as operações em tempo real. Mas não sei se essas operações resultam de fraude. É, por isso, fundamental haver uma “tradução” e estabelecer a relação entre as várias operações. A tecnologia vai eliminar tarefas que muitos de nós não gostávamos, como as reconciliações, que não acrescentam grande valor ao processo, mas no essencial acaba é por transformar o propósito e a finalidade da contabilidade. Penso que esta nova dimensão abre caminho para atrair sangue novo para a profissão, com uma grande aposta na especialização. Como professora, verifico que o progresso tecnológico já chegou ao próprio modo como lecionamos e nas minhas aulas já há uma vertente de análise que até há pouco não existia. Em suma, a tecnologia é uma oportunidade de ouro para tornar a profissão mais interessante e atrativa.