Opinião
Ordem nos media
A descriminalização do abuso de confiança fiscal
11 May 2007
Artigo de Sofia Gonçalves Gomes, jurista da CTOC

                                

Como questão prévia importa desde já equacionar a alteração originada pela nova redacção atribuída ao art. 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) na redacção atribuída pelo art. 95.º da Lei n.º 53-A/2006 de 29 de Dezembro que aprovou o Orçamento de Estado para 2007.
De acordo com a anterior redacção do art. 105.º do RGIT, constitui crime de abuso de confiança fiscal a não entrega (dolosa), por mais de 90 dias, de prestação tributária deduzida nos termos da lei.
Nos termos do art. 114.º do RGIT, constitui contra-ordenação:

·         A não entrega por um período até 90 dias, ou

·         A não entrega por um período superior, desde que os factos constituam crime.

Nos termos do actual n.º 4 do art. 105.º do RGIT, conjugado com o n.º 1 constitui crime:

A não entrega à Administração Tributária, total ou parcialmente de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar.

 

"Os factos"... "só são puníveis se":

 

a)     O decurso de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega de prestação; e,

b)     O não pagamento da prestação comunicada à Administração Tributária, bem como os juros respectivos e a coima aplicável, após notificação para o efeito no prazo de 30 dias.

 

A grande alteração reside neste último ponto, mais concretamente no facto de não ter sido efectuado o pagamento da prestação que foi comunicada à Administração Fiscal, bem como os juros respectivos e a coima aplicável, após notificação para o efeito no prazo de 30 dias.
Desta forma para ficar preenchido o ilícito de abuso de confiança fiscal é necessário que a prestação não entregue tenha sido declarada à Administração Fiscal.
Ao invés, quem não declarar à Administração Fiscal o imposto retido não incorrerá na prática deste ilícito, mas eventualmente na prática do crime de fraude fiscal. Apesar de o sujeito passivo ser devedor de imposto, o certo é que a falta de entrega do imposto não constitui abuso de confiança fiscal.

Por outro lado, exige-se ainda que o não pagamento da prestação tributária não só deve exceder os 90 dias, como também deve ser mantido depois do agente ter sido notificado para, no prazo de 30 dias, pagar a prestação tributária, os juros e a coima. Actualmente, o adiamento da prestação por um período superior a 90 dias não faz incorrer o agente na prática daquele crime, uma vez que é necessário que o agente seja notificado para em 30 dias efectuar o pagamento da prestação tributária, juros respectivos e coima aplicável, e não o faça.
Parece evidente que o que é estabelecido pelo n.º 4 do art. 105.º é uma nova condição de punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal. Ou seja, só será punido quem não tenha entregue à Administração Tributária a prestação a que estava obrigado, se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal para a entrega da referida prestação e, tendo sido notificado para o efeito, terem decorrido mais de 30 dias dessa mesma notificação.
O crime propriamente dito está tipificado no n.º 1 daquela norma. Trata-se de um acto típico, ilícito, culposo e punível. Mas o n.º 4 acrescenta que só será punível mediante a verificação de certas circunstâncias. Ou seja, continua a ser um acto porque depende da vontade humana, típico porque está tipificado na lei, ilícito porque não é permitido pela lei, culposo porque quem o comete é susceptível de censura e punível porque a tal conduta deverá corresponder uma pena, porque é digna de tal.
Acontece que o legislador considerou que não deverá ter dignidade penal a conduta de quem entendeu entregar à Administração Tributária a prestação a que estava legalmente obrigado, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, antes do decurso dos prazos constantes das alíneas a) e b) do n.º 4 do art. 105.º.
Perante esta alteração legal, estamos perante uma condição objectiva de punibilidade na medida em que alude a uma circunstância em relação directa com o facto ilícito, constituindo um pressuposto material da punibilidade.
Assim, aos processos pendentes aquando da entrada em vigor da nova lei (já anteriormente se entendia que, se a prestação fosse paga no prazo de 90 dias a contar do terminus do vencimento da obrigação, tal não seria crime), deverá aplicar-se a redacção actual do art. 105.º na medida em que é mais favorável ao arguido - princípio da aplicação da lei mais favorável ao arguido, previsto no art. 2.º, n.º 4 do Código Penal. E, nesta perspectiva, parece não restarem dúvidas que, determinadas actuações que anteriormente tinham dignidade penal, passaram a ser ilícitos de mera ordenação social. Pois se o agente pagar a prestação a que estava legalmente obrigado, respectivos juros e a coima correspondente pela falta do pagamento atempado, saímos do âmbito do Direito Penal para passarmos para o Direito de Mera Ordenação Social através do pagamento de uma coima, em vez do cumprimento de uma pena de prisão ou de uma multa, conforme estabelecido pelo n.º 1 do art. 105.º.
Em termos práticos significa tudo isto que os Tribunais poderão optar por despenalizar e começarem a julgar extintos os procedimentos criminais, por se encontrar despenalizada determinada actuação que anteriormente era crime, ou então, a ordenarem que sejam notificados os arguidos, passando para estes o ónus de escolha da sua própria actuação: se pagarem no prazo de 30 dias depois de serem notificados, a coima é punição suficiente. Se o fizerem após o decurso desse prazo é conferida dignidade penal à sua conduta.
Finalmente, o art. 105.º poderá suscitar questões de inconstitucionalidade pelo seguinte: ao culminar na aplicação de uma sanção penal para o não pagamento de uma coima dentro de um determinado prazo contado da data de uma notificação, pode o agente querer impugnar judicialmente as contra-ordenações. Se assim for, enquanto estiver pendente uma impugnação de uma coima, não há trânsito em julgado sobre a contra-ordenação. Ora, se o Tribunal ainda não julgou se a coima é devida, pode o agente ser responsável criminalmente por não ter pago a coima que impugnou?
As alterações introduzidas no Orçamento de Estado para 2007 ao nível das infracções tributárias estão a gerar confusão nos tribunais, a multiplicar os recursos e a comprometer o recebimento de dívidas fiscais.
Em causa está o artigo 105.º do OE 2007, sobre o regime geral das infracções tributárias, que vem alterar as condições em que uma empresa ou pessoa pode ser acusada de cometer um crime de abuso de confiança por reter impostos como o IVA e o IRS ou contribuições para a Segurança Social, não os entregando depois ao Estado.
Até ao final do ano passado, a lei estabelecia que esse crime existia sempre que os contribuintes não entregassem o imposto num prazo de 90 dias após o termo do prazo legal para o fazerem.
A nova lei, em vigor desde 1 de Janeiro deste ano, estabelece que são puníveis como crimes de abuso de confiança os casos em que o contribuinte, depois de ter declarado a retenção e recebido uma notificação, não tenha entregue a prestação tributária acrescida de juros e multa, num prazo de 30 dias.
A nova lei prevê ainda que só haja lugar a este tipo de crime quando, passados 90 dias do prazo legal, o contribuinte continue sem entregar à administração fiscal o valor em causa.
A interpretação destes dois novos pontos da lei está a gerar diferentes opiniões entre fiscalistas e tribunais, e levou mesmo o Ministério das Finanças a emitir, no início de Fevereiro, um comunicado onde explica o espírito do legislador.
O Ministério considera que a alteração não descriminalizou os crimes de abuso de confiança fiscal. A alteração em causa refere-se "à despenalização da não entrega da prestação tributária (retenções de IRS/Imposto do Selo e IVA)", sendo apenas essa a intenção do legislador. Efectivamente essa alteração apenas abrange o caso em que a dívida fiscal é participada pelo próprio sujeito passivo, através da correspondente declaração, que não foi acompanhada do respectivo meio de pagamento. Considera ainda que só neste caso, é que haverá lugar a uma "despenalização" nas situações em que o sujeito passivo regularize a dívida fiscal em causa no prazo fixado, após uma notificação enviada ao contribuinte para que ele proceda à regularização.
Entende ainda aquele Ministério que as alíneas a) e b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT referem-se a duas situações distintas, não devendo, por isso, serem entendidas como cumulativas, pois considera que a alínea a) é uma ocultação. Já a alínea b) considera tratar-se de um atraso na entrega do valor declarado que constituirá crime, caso a entrega não ocorra no prazo constante da notificação enviada ao sujeito passivo.
Alguns fiscalistas consideram que a lei foi mal feita porque, apesar da intenção do legislador ter sido fazer verificar uma das duas condições, a forma como foi escrita leva a uma interpretação em que as condições devem existir simultaneamente para que ocorra o crime.