Em Portugal, o nascimento da obrigação tributária inerente aos actos comerciais, verifica-se no seu momento económico e não no seu momento financeiro.
O acto comercial traduz-se na constituição de um direito do vendedor sobre o comprador e na assunção deste de um dever para com o vendedor.
Estamos assim perante uma permuta de realidades objectivas (mercadorias, bens ou serviços), por valores abstractos, como é o caso da constituição daquele direito.
Na verdade, o que temos de factual é que existe um empobrecimento de quem vende, contrabalançado por um direito a receber, isto é uma expectativa de permuta das mercadorias, bens ou serviços prestados, por moeda corrente, ou outros bens ou serviços de valor idêntico ao direito constituído.
O direito à percepção da contraprestação inerente ao acto comercial, nem sempre se verifica, ou até mesmo verificando-se, não raras vezes acontece muito para além dos prazos tradicionalmente consagrados para o efeito.
Ora, o incumprimento daqueles prazos, no caso dos impostos liquidados e retidos pelo vendedor, como é o caso do IVA, podem gerar situações de verdadeira injustiça.
Quando uma transacção comercial não é paga nos prazos estabelecidos, acontece que o vendedor é triplamente penalizado por aquele incumprimento. É penalizado porque, em princípio, os bens transaccionados foram por ele adquiridos a um seu fornecedor e, não tendo sido ressarcido daquela venda, terá que comprar dinheiro para cumprir o compromisso assumido com aquele fornecedor. É penalizado, uma segunda vez, porque quando chegar o momento de proceder ao pagamento do IVA, independentemente de ter ou não recebido o valor da venda, terá que proceder ao seu pagamento ao Estado. Finalmente, é ainda penalizado, porque ao não receber o valor da sua venda vê reduzida a capacidade de reposição dos seus stocks, o que lhe diminui a dimensão de oferta aos seus clientes.
Os benefícios para o incumpridor, são exactamente os mesmos do vendedor, só que aqui em sentido contrário. Até aqui tudo parece normal. Menos normal, é que exista uma lei, porquanto uma disposição universal e imperativa, que obrigue o alienante a liquidar um imposto em nome do Estado e, ainda por cima, nas situações de incumprimento, obrigar que o substituto tributário suporte, em nome de um incumpridor, o imposto liquidado perante o Estado.
É uma lei que indiscutivelmente penaliza a boa fé em que se deve sustentar as relações comerciais e confere manifesta e inequívoca cobertura aos prevaricadores das suas obrigações.
Ao manter a obrigação de liquidação e entrega do IVA ao vendedor está a permitir que o comprador que não cumpra com as suas obrigações, beneficie do direito à dedução do IVA, vendo por esse efeito aumentada a sua capacidade financeira.
Recentemente entrou em vigor um decreto-lei que institui para os sujeitos passivos de IVA, que exerçam ou sejam beneficiários de actividades de construção civil, a obrigatoriedade de repercutirem para a frente a liquidação do IVA. Isto é, contrariamente à regra universal de liquidação desse imposto pelo vendedor, passa a ser o seu adquirente o responsável por aquela liquidação.
Esta aparentemente inofensiva alteração, em meu entender, vem repor no sistema uma justiça muito maior do que o sistema geral é capaz de propiciar. Sabemos que as preocupações que estiveram na base daquela alteração na liquidação, não foram de natureza económica nem financeira, mas sim questões de maior comodidade na fiscalização do IVA, diminuindo de uma forma drástica o número de empresas a fiscalizar.
O Reverse charge, como tradicionalmente é designado no âmbito do IVA, é uma medida de inteira justiça e, não obstante, não consagrar o momento financeiro das operações comerciais, vem repor alguma justiça nas situações de incumprimento das operações comerciais.
Na verdade, ao repercutir para o adquirente a obrigação da liquidação do imposto e conferir-lhe em simultâneo o direito à dedução, está a retirar essa obrigação ao vendedor, pelo que, no caso de incumprimento financeiro, o vendedor, vê-se pelo menos desonerado da responsabilidade de pagar ao Estado um valor que ainda não recebeu do seu cliente. É uma medida que deve ser ampliada e, na medida do possível, aplicada a todos os sectores da nossa vida económica, pois pela sua introdução, deixava-se de alimentar disposições verdadeiramente injustas de obrigar os contribuintes a suportarem perante o Estado valores que são da responsabilidade de outros intervenientes.