A proposta de Lei aprovada pelo Governo para abrir caminho à titularização de créditos fiscais «é um problema complicado do ponto de vista constitucional e da cidadania», disse ontem Sousa Franco, ex-ministro das Finanças de Guterres, entre 1995 e 1999. Sousa Franco falava na qualidade de presidente do Gabinete de Estudos da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (CTOC), numa conferência de imprensa para analisar o Orçamento para 2004 (OE 2004).
«A proposta de Lei é extremamente vaga e não assegura várias garantias constitucionais», disse Sousa Franco, referindo nomeadamente as garantias da imparcialidade e justiça na relação do contribuinte com o Estado.
No fundo, a Lei na sua versão actual «resume-se a quatro artigos que não dizem quase nada, excepto que tudo é titularizável».
A título de exemplo dos elementos que considera mais controversos, Sousa Franco afirmou que a proposta abre a porta à «redução do crédito fiscal em benefício do cessionário», o que é lesivo das referidas garantias constitucionais de justiça e imparcialidade. Além disso, o texto é completamente impreciso em relação à noção de «entidade idónea» que poderá fazer as vezes do Estado na cobrança e gestão dos créditos. Para se libertar dos elementos que não dão garantias de constitucionalidade, «a Lei teria de ser revista de uma ponta à outra» disse a sintetizar o ex-ministro.
Sobre o OE 2004, Domingues de Azevedo, presidente da CTOC, afirmou que o documento contém elementos positivos ¿ de entre os quais destacou a redução da taxa de IRC, as alterações ao Pagamento Especial por conta (PEC), o esforço de contenção da despesa pública e a aposta nas exportações.
Mas para a CTOC, a ênfase é posta nos elementos negativos. «O controlo do défice é feito com engenharia financeira», de que são exemplos maior as receitas esperadas da titularização de créditos, a própria aposta nas exportações é contraditória com a falta de políticas empresariais que realizem esse objectivo, o crescimento da receita fiscal peca por optimismo (ver caixa), a queda do investimento público arrastará a construção civil em crise e, por fim, na análise da CTOC, o OE 2004 será um ano mau para os contribuintes, com carga fiscal a aumentar significativamente (ver caixa), via IRS e alterações esperadas na tributação do património.
OE 2004: forte agravamento fiscal «para os cidadãos»
A actualização de todos os escalões do IRS à taxa de 2% - o valor da inflação esperada -, e a entrada em vigor da reforma sobre o património vai traduzir-se num «significativo agravamento da carga fiscal para os cidadãos», disse ontem Domingues Azevedo, presidente da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (CTOC).
Sousa Franco não corroborou a afirmação quanto ao segundo dos factores de agravamento fiscal, dizendo ser necessário esperar para ver «qual vai ser o regime efectivo» na aplicação das alterações à tributação do património, mas insistiu em que «o IRS vai aumentar para a grande maioria dos contribuintes», sendo a excepção aqueles que não tiveram aumentos de salários reais, ou seja, aumentos nominais acima da taxa de inflação, e os contribuintes que estejam nos escalões mais baixos.
Além disso, referiu, é de prever o fim de uma série de benefícios fiscais, cuja não actualização explícita no próximo Orçamento faz com que caduquem automaticamente, se em 2004 completarem cinco anos de vigência.
Previsão de receita fiscal é irrealista
Nas previsões para 2004 «há uma maior aproximação à realidade, mas há ainda muito optimismo», disse Sousa Franco. A previsão de receita fiscal é particularmente irrealista. Primeiro, porque 2004 será com muita probalidade mais um ano de estagnação do que de crescimento efectivo, como espera o Governo. Além disso, segundo Sousa Franco, o Governo está a fazer mal as contas à base de partida da receita fiscal. Na estimativa de execução de 2003 apresentada no Orçamento prevê-se uma queda face ao programado, de 4,2%, mas as indicações colhidas até Setembro projectam uma distância em relação às metas, para o total da receita fiscal, de 5,6%. Portanto, o crescimento implícito da cobrança de impostos ¿ 3,5% nas contas do Governo ¿ está favoravelmente enviesado. Nas contas de Sousa Franco, o crescimento implícito da receita fiscal, para se atingirem os valores que as Finanças inscreveram para os impostos no Orçamento, é de 7,4%. Muito acima do possível. A lacuna terá de ser coberta por mais receita extraordinária.
CTOC prepara alternativas ao actual PEC
«Não queremos louros, queremos que se façam boas leis», disse Domingues Azevedo a respeito das alternativas ao actual regime do pagamento especial por conta (PEC) que a CTOC vai apresentar, em meados de Novembro. O activo bruto das empresas, o número de trabalhadores e a rendibilidade dos activos são alguns dos indicadores que, para a Câmara, deveriam passar a ser avaliados.
Segundo Domingues Azevedo, a principal razão do seu descontentamento com o PEC «não se prende com a existência de um regime de tributação simplificado, mas sim com o «modus operandi» em vigor».
Domingues Azevedo avalia o funcionamento do PEC de uma forma negativa, acrescentando que se trata de «um elástico usado de acordo com as necessidades do poder político» e que as empresas não podem estar sujeitas a essas variações. Na sua opinião, o PEC vai passar a ter uma maior influência nas PME do que nas grandes organizações e, por isso, continuará a merecer críticas, apesar de, agora, não evidenciar «os excessos cometidos no ano passado».