Não gostou de ler as últimas reportagens sobre Portugal na imprensa internacional e vai continuar a sua campanha contra a lamúria para que o país recupere a auto-estima. Preocupado com a estagnação económica, o desemprego e a evasão fiscal, Jorge Sampaio deixa alguns recados ao Governo, apesar de reconhecer que aceita medidas extraordinárias para manter o défice dentro do limite dos três por cento
P. - O que sentiu quando viu a reportagem na «Time» sobre Bragança, ou a reportagem sobre a depressão nacional no «El País»?
R. - O mundo actual tem muitos concorrentes e mesmo os nossos melhores amigos são nossos concorrentes. Não podemos dar argumentos para destruir a nossa auto-estima, mas estamos a destruí-la. Num momento de recessão económica, com sérios problemas de desemprego, temos que fazer um esforço para ultrapassar isto.
Bragança? O que é que respondo a um americano que tenha escrito essa reportagem? Meu caro amigo, não me vai falar sobre os problemas de algumas das suas cidades, pois não? Nós temos é que valorizar Bragança. E alguma vez os jornais espanhóis, quando está a Espanha em causa no exterior, não fazem uma frente comum? Fazem o seu papel de defesa de interesse público espanhol e ainda bem!
P. - Como é que se muda a auto-estima de um país?
R. - Tendo confiança! Nós temos no país coisas de que nos devemos orgulhar, não podemos é estar na defensiva, temos que estar ao ataque com determinação.
P. - Acha que esta crise de confiança está a afectar o Governo?
R. - Apreciaremos o Governo na altura própria, eu prefiro apreciar a evolução das nossas expectativas estratégicas. Por exemplo: Alterou-se alguma coisa em matéria de combate ao insucesso escolar? O ensino ao longo da vida abriu-se? O que é que está a acontecer em matéria de inovação e de ciência? Temos condições para um esforço sustentável de investigação aplicada às empresas? E será que a nossa burocracia diminuiu, que estamos a dar estímulos à função pública?
P. - Já pode dar respostas a algumas dessas perguntas?
R. - Ainda é cedo.
P. - Estamos no bom caminho?
R. - O caminho é discutível e espero que haja alternativas que o demonstrem. Tenho um dever de solidariedade institucional ao Governo, este mudou, mudaram as orientações, mas há duas ou três coisas que me preocupam, devo confessar.
P. - Quanto ao défice orçamental, acha boa esta política ou que devíamos furar o Pacto de Estabilidade e Crescimento?
R. - Com a devida vénia para a ministra das Finanças, que espero não me venha dizer que não posso falar sobre isto porque não sou economista, vou alinhar um ou dois pontos. Para mim, se ao fim deste sacrifício não houver suficiente consolidação orçamental, então isto foi muito sério. Temos que perguntar: a consolidação fez-se, ou em 2005 vamos outra vez alargar os cordões à bolsa porque as eleições estão aí? E será que não poderia haver mais investimento público, até porque o investimento público desencadeia investimento privado?
P. - Há aí um certo distanciamento em relação às opções do Governo em matéria de disciplina orçamental...
R. - Pelo contrário, até porque promulgo as medidas extraordinários do fim do ano porque acho que podem ser importantes para respeitar o défice. E promulgo porque sem elas o défice estaria, em 2003, muito acima dos quatro por cento. Isto apesar de todos perceberem que tem havido um grande esforço de contenção da despesa pública: o problema são as receitas. E, nas receitas, para além da diminuição da actividade económica, pois não estamos a crescer, há uma forte evasão fiscal. Sem combater essa evasão fiscal, nada feito, porque temos grande rigidez na despesa pública.
P. - No combate à fuga aos impostos, não devia haver abertura do sigilo bancário?
R. - É fundamental. Como é fundamental, a prazo, consolidar as nossas finanças públicas.
P. - Isso só se faz com a convergência dos dois maiores partidos.
R. - Fiz esse apelo logo na posse: arrumem lá a questão das contas do passado e depois tratem do resto. E o resto é tudo. Pensei que poderia ser o início de uma colaboração interpartidária, mas não foi e estou preocupado...
P. - O que é que fez para que fosse?
R. - Não lhe digo. Foi tudo perfeitamente legítimo, passei muitas horas ao telefone.
P. - Não conseguiu...
R. - Não teve sequência. Por outro lado, não podemos deixar de estar preocupados com o aumento do desemprego.
P. - O próprio Governo diz que vai continuar a subir...
R. - É natural, não estamos a crescer. Se não tenho investimento não posso crescer, mas se tenho investimento posso prejudicar o défice, pelo que temos que ser muito criteriosos. E há uma coisa que temos que ter clara: se não nos apetrechamos em matéria de inovação, em capacidade de desenvolver as forças produtivas modernas, quando os fundos diminuírem estaremos mal.
P. - Os empresários portugueses estão à altura desse desafio?
R. - Tenho feito o percurso, tão criticado, de mostrar as coisas boas. O meu combate à lamúria vai continuar. Sei que há pessoas que fazem milagres, que há gente nova extremamente bem preparada, multinacionais que decidiram fazer os seus centros de excelência em Portugal. Não podemos render-nos à ideia de que "a malta não sabe matemática", precisamos é de travar uma batalha de vida ou morte para que escolas básicas acompanhem a matemática. É por aí que podemos vencer.
P. - Não está tão optimista quanto o Governo no que se refere à recuperação económica para o próximo ano...
R. - Adoraria ver muitos sinais de recuperação e tudo farei para que existam na parte que me respeita. Mas se nós lermos o Orçamento para 2004 é evidente que há imensos sinais de prudência porque nós dependemos de outros, dependemos em especial do que acontecer na economia europeia. Espero também que o estudo de Daniel Bessa permita mais discriminações positivas. Gostava de ver mais incentivos - sei que a ministra das Finanças não é a favor... - que privilegiem investimento em zonas depauperadas e que se arriscam a não ter ninguém. Se podemos tirar algum ensinamento dos trágicos incêndios do Verão é que há um outro Portugal que o país urbano redescobriu. Estão lá os velhos, no meio dos pinheiros. Tiveram uma derrocada absoluta nas suas vidas e nós temos que recompor isto.