Opinião
Ordem nos media
A «ratoeira» do regime simplificado de tributação
17 September 2004
Opinião de A. Domingues de Azevedo, Presidente da Direcção da CTOC
O sistema fiscal é um tema que, pelos efeitos que tem na vida das famílias e dos cidadãos, reúne as características de permanente actualidade. Na verdade, a conjugação de diversos factores do nosso quotidiano e as consequências de algumas medidas políticas de um passado recente, indiciam que aquele tema tenderá a aumentar a sua importância na vida do dia a dia dos cidadãos. As necessidades financeiras de qualquer Estado, são directamente proporcionais à sua capacidade de intervenção na sociedade, no sentido de tentar encontrar fórmulas de vida com melhor qualidade para os cidadãos que a constituem. É pois um tema que acompanhará a evolução da própria sociedade e, num regime democrático, sendo os gestores dessa sociedade escolhidos pelo Povo, eles serão sempre avaliados pela sua capacidade de solucionar os problemas que o afectam. Sendo uma realidade a que ninguém se pode furtar, a questão reside em saber se os princípios, métodos e forma da determinação do quantitativo com que cada um deve comparticipar nas despesas sociais, atinge em termos de universalidade todos os cidadãos e se esse quantitativo é ou não coerente com a efectiva capacidade contributiva dos cidadãos, famílias ou outras realidades tributárias. A evolução do sistema fiscal português, com especial realce para o período pós 25 de Abril de 1974, tem-se revelado com algumas características muito específicas, umas próprias das coisas novas, outras que manifestam de alguma maneira a aprendizagem que vamos fazendo da nova realidade da nossa sociedade e outras ainda de um determinado tipo de cultura que apenas as novas gerações poderão resolver. Na verdade, neste e noutros domínios a nossa evolução tem-se caracterizado como uma espécie de inversão da pirâmide, como se aí se encontrasse o remédio para todos os males. Os excessos de parte a parte, quer na concepção das leis fiscais, quer no comportamento dos cidadãos que buscam sempre a fórmula mais adequada para se furtarem às suas obrigações de cidadania, quer nas respostas encontradas pelas entidades e agentes que zelam pelo cumprimento das normas fiscais, têm criado um clima de crispação e desconfiança, que em nada abona à criação de um espírito de cidadania que urge a todo o custo construir. Esse espírito de cidadania tem que ser construído numa base de verdade e transparência, criando mecanismos, acções e factos que desincentivem o incumprimento, sustentado num permanente acompanhamento e sensibilização dos obrigados fiscais. Mas para essa política de verdade e transparência fiscal, temos que ter leis justas. A maior justificação para o incumprimento, assenta muitas vezes não numa vontade deliberada de incumprir, pois o terror de ser apanhado persegue permanentemente o incumpridor, mas sim na interiorização consciente da injustiça da própria lei, gerando forças anímicas que sustentam o seu incumprimento. A inexistência de uma política fiscal e a existência de uma fiscalidade para a política, gera na gestão do sistema pressões e concepção de normas que contrariamente às preocupações de justiça fiscal se sobrepõe a necessidade de receitas para o cumprimento das metas políticas definidas. Aquele facto constitui um conjunto de ingredientes que conduzem, normalmente a excessos quer por parte dos contribuintes quer por parte de quem zela pelo cumprimento das obrigações fiscais, criando-se situações injustas que, a coberto de outros incumpridores, paga o justo pelo pecador. Exemplo evidente do que se acaba de descrever é o funcionamento do regime simplificado de tributação para as sociedades, em que se criaram autênticas ratoeiras aos profissionais da contabilidade e sujeitos passivos, contrariando na sua mais pura essência uma relação de transparência entre administrados e administradores da relação tributária. Quando os sujeitos passivos entregam a declaração de início de actividade e optam por um determinado regime de tributação estão inequivocamente a manifestar que, em função das coordenadas da actividade que se propõem desenvolver, qual o regime de tributação que lhe é mais adequado, não abonando nada à transparência da relação tributária a Administração Fiscal, sem que avise por qualquer forma o contribuinte, conforme estabelece o artigo 35º do Código do Processo e Procedimento Tributário, a coberto de uma disposição legal que pode ter tudo menos transparência, os enquadre contra a sua vontade no regime simplificado, apenas e só porque isso gera um valor superior de receitas. Mas, não estando de acordo com a realidade tributária do contribuinte, nem mesmo tenha sido essa a sua manifestação de vontade, o acto praticado pela Administração Fiscal, conduz inexoravelmente à tributação de irrealidades, obrigando por essa via ao pagamento de impostos que não correspondem ao lucro obtido no exercício da actividade que o contribuinte desenvolve. O poder discricionário conferido à Administração Fiscal por efeito da sua função pública só pode ser entendido como um meio para a reposição da verdade tributária, mas nunca como um meio que, sob a capa da legalidade, obrigue os contribuintes a pagar aquilo que não devem. Com base nos rendimentos de alguns obrigados tributários, com especial realce para as actividades industriais, comerciais e profissionais, tem-se vindo a desenvolver algumas teorias de que estas constituirão um meio privilegiado de fuga e evasão fiscal. Reconhecendo excessos nalguns domínios, penso que a mensagem a transmitir não tem sido a mais adequada, alimentando-se uma ideia de todos os que exercem qualquer uma daquelas actividades são evasores fiscais. Assim não é, e tem-se menosprezado o importante papel que as mesmas desempenham na criação e manutenção de postos de trabalho, resolvendo por essa via problemas que, em última instância competiria aos poderes instituídos resolver através do fundo de desemprego. O bom senso e o equilíbrio das situações, de parte a parte, serão, não tenho dúvidas, a grande via que construirá um futuro diferente. Um futuro sem ratoeiras em que, nas diferenças naturais de cada um, no desempenho da função que a cada um compete, todos caminhemos de mãos dadas nesta passagem terrena.