Ordem nos media
Entrevista ao Bastonário - «Em Portugal, a carga fiscal é menor, mas os benefícios também são menores»
25 February 2005
Entrevista a Domingues de Azevedo, Presidente da Direcção da CTOC
Em entrevista ao Póvoa Semanário, Domingues Azevedo, presidente da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, expressou a necessidade de se concretizarem alterações de base no actual sistema fiscal português. No que concerne ao combate à evasão fiscal, este especialista aplaude a quebra do sigilo bancário, defendendo, paralelamente, o aumento das regalias ao contribuinte. Póvoa Semanário: Como é que caracteriza a administração fiscal portuguesa? Domingues Azevedo: A gestão, a forma de concepção e o sistema de funcionamento do sistema fiscal português sofreu, nos últimos anos, uma alteração profunda, em especial por razões que se prendem com as necessidades financeiras do próprio Estado, tendo vindo a assumir um papel preponderante nas receitas públicas. Qualquer sistema fiscal assenta na relação entre os benefícios directos do cidadão contribuinte, inerentes à sua participação nas despesas da sociedade onde está inserido. Mas nesse domínio ainda continuamos a enfrentar dois problemas graves: um de ordem cultural ¿ derivado ao facto de sermos uma sociedade na qual, há 30 anos atrás, o Estado nunca tinha intervido, criando-se uma espécie de mito em que o fisco seria algo de marginal ¿, outro relacionado com o facto de o Estado actual se servir do sistema fiscal como uma espécie de boca-de-incêndio que serve para apagar, ou atenuar, os fogos provocados pelos próprios políticos, continuando-se sem se consolidar uma relação que deveria ser de parceria entre o Estado credor e o contribuinte. Nota-se, portanto, uma desconfiança dos portugueses em relação ao fisco? Penso que sim, até porque as vantagens das contribuições pouco se fazem notar e porque se continua a cultivar a ideia de que todo o contribuinte é um potencial fraudulento e incumpridor. 

Infelizmente, em Portugal, ainda não se desenvolveu uma política fiscal capaz de determinar, com rigor, qual o excedente dos contribuintes - cidadãos e empresas -, de forma a credibilizar a administração fiscal, que deveria ser complementada com um sistema penal eficaz, penalizando exemplarmente os incumpridores e premiando os cumpridores. O nosso Sistema Fiscal não pode assentar na existência de uma fiscalidade para a política mas, pelo contrário, tem de assentar num sistema de existência de uma política fiscal. Enquanto isto não for alterado, os políticos vão continuar a prometer as obras, exi-gindo ao sistema fiscal que recolha as receitas necessárias para a realização dessas obras. A carga fiscal que incide sobre os portugueses está ajustada à realidade do país? 

O pagamento de impostos deve reflectir contrapartidas. O Estado tem obrigação de fazer estradas, tem a obrigação de desenvolver um Serviço Nacional de Saúde eficaz e capaz de responder às necessidades da população e tem a obrigação de desenvolver sistemas de segurança. Estes são apenas alguns exemplos, até porque nunca a carga de fiscalidade poderá ser medida em termos absolutos. Mas tendo em conta a relação imposto/benefício, como compararia Portugal com outros países europeus? Se compararmos a carga fiscal portuguesa com a carga fiscal sueca, dinamarquesa, alemã ou francesa, posso dizer que a nossa não está ainda ao nível das outras que referi. Isto é, os portugueses pagam menos impostos. Mas, em contraste, qualquer contribuinte francês, alemão, sueco ou dinamarquês quando está doente, por exemplo, não tem de esperar oito meses ou um ano para ser operado, ou para ter uma consulta de especialidade. Imediatamente lhes são propiciados os meios para serem tratados. Esses cidadãos sabem que quando atingirem a idade de reforma têm a garantia de que existem mecanismos instituídos, decorrentes dos impostos que foram pagos, que lhes vão garantir uma recta final de vida com um mínimo de dignidade. Em Portugal a carga fiscal é menor, mas os benefícios são também bastante menores. No entanto, se avaliarmos o retorno que nos é dado pelas contribuições não tenho dúvidas em dizer que a nossa carga fiscal está no limite. O português é um bom contribuinte fiscal? Não há contribuintes bons, nem contribuintes maus. Há contribuintes que compreendem e cumprem os seus deveres de cidadania e outros que não. 

O que é importante é termos leis justas porque, caso isso não aconteça, será o próprio contribuinte e tentar restabelecer essa justiça. Esse princípio de cidadania entre direitos e deveres ainda não está muito cultivado em Portugal, até porque os impostos que pagamos são sempre uma parcela significativa dos nossos rendimentos. Ao pagarmos um imposto estamos a empobrecer, até porque ao fazê-lo estamos a privar-nos de outras coisas. Por isso, é necessário que o Estado desenvolva mecanismos que leve o cidadão a compreender a validade das suas contribuições. Nós apenas temos um regime tributário penal desde 1990 o que é bem elucidativo do conceito e valoração social que a nossa sociedade deu a este dever de cidadania. O Estado é que tem a obrigação de penalizar de forma exemplar todos os que não cumprem, e em especial os que não cumprem intencionalmente. Esse combate à evasão fiscal passa pela quebra do sigilo bancário? Já na Assembleia da República, enquanto deputado, no ano de 1986, eu fui a primeira pessoa a defender a quebra do sigilo bancário para efeitos fiscais. Nessa altura quase que me comiam vivo. Eu concordo com algumas das alterações já concretizadas em Portugal, mas acho que se devia ir mais além. O sistema canadiano é para mim exemplar, no qual todas as verbas terão de passar por uma movimentação bancária que deverá ser justificada perante a administração fiscal, com total clareza e transparência. Em Portugal a transparência fiscal nunca será fácil de obter porque os portugueses estão mal habituados. É preciso que fique claro que ninguém quer saber os saldos bancários de ninguém. Penso que a quebra do sigilo bancário é um grande passo e penso que, a curto prazo, ainda conseguiremos ir mais além. A contribuição fiscal é também um fundo de garantia à aposentação, numa altura em que se fala frequentemente na falência do sistema de segurança social. 

O que é que pode ser feito para travar essa caminhada para a falência? A última coisa a falir é aquilo que é público. Acho que não faz muito sentido falar em falência e isso apenas acontece porque se tem usado e abusado da segurança social. Os diversos governos que têm gerido a nossa sociedade têm-se aproveitado desse regime para a atribuição de algumas benesses a sistemas e ao funcionamento de diversas situações que, de facto, estão a delapidar a segurança social. Na minha opinião, o sistema de segurança social está bem concebido e não corre o risco de falir, isto, claro está, se os governos não o delapidarem. A segurança social não pode ser um saco do qual se vai tirando mais do que o que lá se vai colocando. Se assim continuar a ser, mais dia ou menos dia o saco esvazia-se. Repare que, levando em conta alguns números recentes, o sistema estava a suportar o fundo de desemprego em cerca de 4,5 milhões de euros por dia. Ora, por muito grande que seja um sistema, não é essa a vocação da segurança social. Mas, com toda a honestidade, penso que é desajustado falar-se na falência desse sistema.