Entrevista
Entrevista a João Moreira Rato, presidente do Instituto de Corporate Governance
2 January 2025
JMR1
«Para resolver os problemas do país não basta pensos rápidos, é preciso reformas de fundo no modelo económico»


Dos objetivos próximos do IPCG fazem parte a criação de um Código de Governo das Sociedades simplificado e adaptado às especificidades das PME portuguesas. A revelação é feita por João Moreira Rato, presidente do IPCG. Para este economista, que entre 2012 e 2014 geriu a dívida pública nacional, enquanto não existir «crescimento económico suficiente» estaremos sempre «a improvisar e no fio da navalha.»


Contabilista – O Instituto Português de Corporate Governance (IPCG) é uma associação de direito privado, sem fins lucrativos, constituída em 2023. De uma forma resumida, quais são as suas atribuições?

João Moreira Rato – O principal produto deste instituto é o Código de Governo das Sociedades (CGS). O IPCG desempenha um papel ativo nas revisões regulares deste documento, adaptando-o e evoluindo face aos tempos. Por outro lado, anualmente, as empresas emitentes são monitorizadas em relação às recomendações feitas no Código, permitindo medir o grau de adesão, bem como avaliar a sua evolução ao longo dos anos. Permite ter uma boa noção de como a governance vai evoluindo em Portugal. A nossa missão passa por espalhar pelo tecido económico-empresarial nacional as melhores práticas de governance. Recentemente, apresentámos ao governo uma proposta, formulada por um grupo de trabalho nosso, com recomendações de boas práticas para o setor empresarial do Estado. Para além disso, ajudamos na metamorfose do programa do Business Roundtable a preparar o guia e a desenhar o sistema de autoavaliação. Estamos sempre abertos a trabalhar com outras instituições, como é o caso, por exemplo, do IAPMEI, e organizamos, com regularidade, seminários de difusão de informação. Temos também o programa «Avançar» para administradores não executivos que, na minha opinião, é nesta área, o mais completo, com um corpo docente de luxo em matéria de governance.

Foi apresentado há dias o relatório anual de monitorização referente ao exercício de 2023 e que integra 36 empresas, sendo que apenas duas não são cotadas em bolsa. Trata-se de um universo muito confinado e escasso. A resistência a aderir, que já reconheceu publicamente, é uma dificuldade na disseminação das boas práticas?

No IPCG temos vindo a querer alargar o leque das empresas monitorizadas e é isso que explica que tenhamos incluído algumas que não são emitentes, que não têm necessidade de seguir o CGS. Mas o que se verifica é que existe insegurança em algumas empresas em relação às práticas de governance. Existe o medo de medirem o estado da evolução da sua governance. O dever do IPCG passa por desmistificar esse preconceito associado à monitorização que, no fundo, é um serviço único para as empresas, que envolve um sistema de comply or explain.

Concretamente o que é que isso significa?

Ou seja, se a empresa por algum motivo não cumprir as recomendações, pode vir falar com a nossa equipa e apresentar uma justificação. É uma forma que permite ir melhorando e aprofundado as práticas. No fundo, é como ir ao médico e sair de lá com um diagnóstico. Esta monitorização possibilita verificar as áreas em que as empresas estão mais confortáveis e outras em que podem evoluir. E tal como após uma ida ao médico, também aqui uma boa prática passa por fazer exames complementares.

Tem referido que o setor público está muito mais atrasado do que o setor privado no que diz respeito à governance. Qual é a explicação?

Penso que tem a ver, fundamentalmente, com questões de escrutínio, por parte da opinião pública e a politização do setor empresarial do Estado. Este setor está melhor em termos formais do que na prática. Explico: existem já leis que preveem muitas práticas, mas que não são seguidas. Defendo, por isso, que o grau de exigência sobre o setor empresarial do Estado aumente, seja por parte do escrutínio parlamentar, seja por parte do escrutínio da opinião pública.

O CGS poderá um dia ser destinado às PME, tornando-as mais competitivas e propiciando melhores condições para a adaptação às regras nacionais e europeias?

Este código para se aplicar às PME tem de ser simplificado. Esse é um trabalho que temos de ser nós a fazer. As pessoas que desempenham funções no IPCG fazem-no pro bono e, como tal, teremos de encontrar, algures no tempo os recursos para levar em diante esse trabalho. Francamente parece-me que existe apetite das PME para isto. Esse é, pelo menos, o feedback que temos tido de associações empresariais e setoriais que nos pedem um código simplificado desse género adaptado à especificidade das PME.

A adoção dos critérios ESG é um dos maiores desafios no presente para as empresas. O secretário de Estado da Economia referiu, recentemente, que existe «muita teoria», mas persiste «a dificuldade em implementar as medidas no terreno.» Concorda com o alerta do governante?

Numa primeira fase a ênfase foi muito no reporte. E para ser preciso, o tecido económico ainda está a absorver a questão do reporte, nomeadamente ao nível da exigência. As empresas estão focadas nos processos internos e na forma como organizam a governance, tendo em vista reportar um bom relatório de sustentabilidade. Mas é preciso realçar o seguinte: a preocupação com a sustentabilidade não é um assunto assim tão novo como se faz querer passar. Só que neste momento, todas as empresas, para além das cotadas, encontram-se focadas nos pilares da criação de valor a longo prazo e na demonstração de resiliência. Acontece que incorporar estes pilares nas suas práticas é algo que leva tempo.

Os gestores e os empresários estão conscientes do que significa este novo paradigma para o seu modelo de negócio?

Insisto: não é um novo paradigma, é uma evolução do que já existia. E o nosso tecido económico carece de evolução: para competir nas cada vez mais exigentes cadeias de valor no mundo global precisa de ter escala e dimensão, profissionalizar-se, com os critérios cada vez mais exigentes dos clientes. As empresas ou adquirem escala ou não conseguirão absorver os custos destas novas obrigações decorrentes da sustentabilidade. E ao mesmo tempo precisam de assumir riscos com que não se preocupavam. É a oportunidade para a emergência de uma nova cultura empresarial e que tem associada as dores normais de crescimento do tecido económico português.

Ou seja, algumas (ou mesmo muitas) empresas podem ficar pelo caminho?

Sim, como em qualquer ocasião em que existe uma aceleração da transformação do tecido económico. Certamente haverá as que ficarão pelo caminho e outras terão sucesso. É a célebre teoria da destruição criativa de Schumpeter.

O Estado devia estimular e incentivar os desempenhos positivos das empresas, nomeadamente ao nível da majoração positiva em concursos públicos?

Sim, mas o Estado devia começar pelo próprio setor empresarial do Estado. Se o setor empresarial do Estado não tem boas práticas, como é que o Estado pode exigir boas práticas ao setor privado? O Banco de Fomento deve estar em linha com a exigência de qualquer investidor no setor privado. Ao nível dos apoios, o Estado deve ter a mesma postura.

A sustentabilidade económico-financeira é fundamental e sem esta o cumprimento dos critérios ESG perde relevância. A figura do contabilista público na administração pública carece de regulamentação, logo, não é de recurso obrigatório. São os profissionais mais qualificados no domínio contabilístico e financeiro que devem assumir o papel de preparadores da informação nas entidades estatais?

Sim, no caso do setor empresarial do Estado toda a ajuda é bem-vinda e é muito importante introduzir uma disciplina económico-financeira. E a figura do contabilista público pode aumentar a disciplina no ato de prestação de contas e também na planificação, orçamentação e organização da governance no setor empresarial do Estado.

O Orçamento do Estado 2025 acabou por ser aprovado, pese embora a fragmentação do Parlamento. O contexto político faz deste o documento possível?

Permita-me que faça uma ressalva: sobre este e outros temas pronuncio-me na condição de economista e não como presidente do IPCG. Para contextualizar devo dizer que o país, atualmente, se confronta com problemas graves em duas dimensões: emigração de talento (o que sinaliza de forma clara que os jovens veem com melhores olhos uma carreira no exterior) e a falência dos serviços públicos (a braços com problemas gestão ou de financiamento). Para os problemas de fundo do país serem resolvidos não basta pensos rápidos, é preciso introduzir reformas e alterações de fundo à forma como o modelo económico está organizado.

A intervenção prioritária deve acontecer em que área?

Portugal não dispõe de muito capital, em particular o intangível. Quero com isto dizer que o capital vem com as marcas, os softwares, a própria organização empresarial, etc. Acredito que muitos jovens preferem emigrar porque sabem que o capital intangível que aumenta o valor do seu trabalho está no estrangeiro e não aqui. Se eu trabalhar, por exemplo, na Google, ou numa empresa de software de pequena dimensão em Portugal, com os mesmos skills, provavelmente sou mais bem pago na Google. Logo, a única forma de essas pessoas cá ficarem é a Google (ou outra qualquer tecnológica) vir para cá. Portugal precisa de ser mais atrativo para trazer mais capital, especialmente o intangível. Há um grande enfoque, algo antiquado, de trazer grandes projetos industriais. Hoje são altamente automatizados e não criam assim tantos postos de trabalho. É preciso atrair mais gente para a área de serviços, como, por exemplo, empresas do setor automóvel com forte componente de IT.

Depois da contextualização, o que é que muda, afinal, no OE/2025?

Corrige uns detalhes, aqui e ali, emite um ou outro sinal positivo, mas no essencial muda pouco. O IRC é um bom sinal, mas se não se criarem empregos apetecíveis não é o IRS Jovem que é a solução.  O governo precisa de ter a ideia de que está a “vender” o país lá fora e que deve ter uma boa história para contar.  Recordo que entre 2012 e 2014, quando fui presidente do ICGP e geria a dívida pública, tínhamos, enquanto país, uma história para contar. Veja como Miami, por exemplo, nos últimos anos, conseguiu atrair muitas atividades para a cidade, como foi o caso da Citadel. Trouxeram tudo em pacote, apresentando boas condições fiscais, lifestyle, etc.

Falta vender melhor a marca Portugal e tudo o que a ela está associada?

Não, é preciso o pacote. O lifestyle temos. Só que a complexidade, a instabilidade fiscal e as dificuldades de agilização do licenciamento, são sempre problemas. Faria sentido um consenso alargado em matéria de estabilidade e simplificação fiscal. Reconheço que é difícil atingir a simplificação fiscal porque há profissões e setores inteiros da economia que vivem da complexidade. Mas isso não é bom para o nosso modelo de crescimento económico. E enquanto não houver crescimento económico suficiente estaremos sempre a improvisar e no fio da navalha.

É comum ouvir-se que a economia portuguesa é aberta e periférica, ou seja, dependente do que se passa nos outros países. Com a França e a Alemanha em apuros, podemos sofrer por tabela?

Diz-se, de facto, que somos uma economia aberta. Mas isso, de alguma maneira, é um mito. Veja que a nossa percentagem de exportações em relação ao PIB é menos do que a média da OCDE. Devíamos ser uma economia muito mais aberta do que somos. Se for ver os 10 maiores exportadores portugueses, garanto-lhe que sete ou oito são estrangeiros. Inclusive na área dos serviços. Criar empresas portuguesas de maior dimensão pode ser o caminho, mas tenho dúvidas que seja suficiente.

A dívida francesa está a inquietar muita gente. Pode haver uma eventual reedição da crise das dívidas soberanas ou a zona euro é suficientemente robusta para aguentar o embate?

O que me preocupa é o consenso que existe na opinião pública francesa para que não prevaleça a disciplina no controlo da dívida pública francesa. Parece que existe um consenso sobre medidas que só contribuem para aumentar os gastos públicos. É isso que torna a situação muito perigosa. Estas situações evoluem muito lentamente. Relembro que o caso português levou anos até 2011. O facto de existirem défices externos pode tornar a situação ainda mais insustentável no futuro. E é daí que nasce uma crise.

Com uma Europa mais desunida como a que temos, pode haver mais países a seguir o exemplo francês, quebrando a disciplina orçamental?

O problema da crise europeia, como vimos da última vez, vai depender do contexto político que existir. A Europa ainda não tem instituições próprias que lhe permita lidar com uma crise. Bem sei que estamos melhor, porque o Banco Central Europeu (BCE) tem mais ferramentas, mas é importante que haja um consenso político nos vários Estados que integram o projeto europeu. E isso é imprevisível, logo muito perigoso. E com a instabilidade nas duas maiores economias europeias, mais instável se torna o cenário. A Europa tem sido muito atreita a fenómenos de fragmentação.

Escreveu o livro The European Debt Crisis: How Portugal Navigated the post-2008 Financial Crisis. Depois da intervenção da troika no nosso país a narrativa das contas certas acabou por vingar. Contudo, as contas estão muito controladas à custa dos cortes no investimento, mas as aprovações de medidas na especialidade acabaram por baralhar os cálculos do governo. Dizia há dias o coordenador da UTAO - Unidade Técnica de Apoio Orçamental - que «temos de ter juizinho». No caso português a manta é mesmo curta?

A disciplina orçamental é uma coisa boa quando se tem dívidas elevadas. E isso aconteceu com Portugal. Mas a melhoria da nossa situação foi conseguida à custa do sacrifício do modelo social. Há muitos exemplos: cada vez mais pessoas com seguros de saúde privados, 30 por cento de doentes oncológicos que são atendidos no Estado são vistos para além da data recomendada. E até na educação, como reconheceu o ministro, a falta de professores em algumas disciplinas não é um problema que vai ser resolvido nesta legislatura. Geri a dívida pública e concordo que a disciplina orçamental faz sentido quando a dívida é muito elevada, mas o problema é que a manta é curta.  O enquadramento mostra uma escassa atratividade fiscal e um modelo social deficitário. Isto não se resolverá se não for alterado o modelo económico que está na base disto tudo. Só se sairá destes apertos permanentes com crescimento económico.

Quando fala de crescimento económico é o tal número mágico de três por cento que todos os economistas apontam?

Provavelmente mais do que isso, ao nível do crescimento dos países do leste europeu e da própria Irlanda. Ou se tem ambição ou então assume-se às pessoas que o Estado Social prometido não pode ser cumprido. Até à data os políticos ainda não assumiram a falência do Estado Social.


A descida dos juros está a abrir o apetite pelos certificados de aforro. Defende que se deve aumentar a atratividade destes produtos de poupança. É previsível, no atual contexto, o aumento do trânsito dos depósitos bancários para os aforros nos meses mais próximos?

O importante na questão dos certificados é manter uma certa estabilidade na relação com os aforradores. Foi isso que falhou nos últimos anos, com muitas oscilações repentinas nas condições de atratividade. Aliás, quando fui para o IGCP uma das primeiras medidas tomadas foi restabelecer a atratividade dos certificados de aforro, e isto foi feito contra a opinião, na altura, dos bancos. Lembro até que se estimulou o investimento das pessoas em certificados do tesouro, com participação no PIB, em que os aforradores que investiram tiveram retornos espetaculares. Por outro lado, nas obrigações do tesouro, o Estado tem de ter uma presença regular nos mercados e, no fundo, ser previsível. É necessário evitar desequilíbrios que só revelam défices na gestão da dívida pública.

A literacia financeira é uma competência cada vez mais importante e entrou, este ano, pela primeira vez, nas matérias da disciplina de Educação para a Cidadania. Saber o que é um PPR, uma obrigação de tesouro ou um certificado de aforro é de crucial importância para a tomada das melhores decisões?

Ter literacia financeira e saber como poupar são aspetos fundamentais, até porque é sabido que a Segurança Social vai precisar de ser complementada. Mas porventura será um problema menos sério do que possa parecer. Veja que quando os certificados de aforro estão mais atrativos as pessoas vão logo investir neste produto de poupança. Existe uma panóplia suficiente de produtos para que os portugueses possam poupar bem? O mercado deve, por isso, ser mais concorrencial e competitivo, com mais oferta de produtos. Nas minhas poupanças tenho um PPR, pelo qual pago menos impostos sobre as mais-valias, o problema é que eu não tenho mais-valias. Isto é um exemplo de uma gestão mal feita. Ao invés, quando olho para os produtos de poupança que tenho no Reino Unido verifico que me rendem seis ou sete pontos percentuais mais do que os que tenho em Portugal. Ora, isto não é um problema de literacia financeira, é um problema sobre o que o mercado financeiro oferece aos aforradores portugueses. Temo, por isso, que a ênfase colocada na literacia financeira esteja a desviar a atenção de outros problemas que têm a ver com os produtos financeiros disponíveis.

Entrevista  Nuno Dias da Silva | Fotos Raquel Wise

PERFIL

João Moreira Rato nasceu a 29 de setembro de 1971. É o atual presidente do Instituto Português de Corporate Governance (IPCG). De 2012 a 2014 foi chairman e CEO da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP, E.P.E). Nessa função, foi responsável pela estratégia de retorno aos mercados de dívida pública de médio e longo prazo e pela sua execução bem-sucedida. Esteve mais de dez anos na banca de investimento em Londres, com passagem pela Morgan Stanley, Lehman Brothers e Goldman Sachs. No setor bancário foi chairman do Banco CTT. É professor associado convidado da Nova School of Business and Economics e da Nova IMS.

Entrevista publicada na Revista Contabilista n.º 296, dezembro de 2024

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