Opinião
A Contabilidade em contexto de Mudança Ética e Contabilidade na Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Fernandes Ferreira
4 Junho 2012
Opinião de Alberto da Silva Barata (Prof. Coord. (S/A) Jubilado do ISCAL)

A Contabilidade em contexto de Mudança Ética e Contabilidade
Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Fernandes Ferreira


                                                                               Alberto da Silva Barata*
A abrir…
    «O homem é naturalmente bom, mas a sua bondade foi corrompida pela sociedade: é preciso, sempre que possível, voltar à virtude primitiva».
                       Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Dicionário EK. Larrousse, 1978

1. O Contexto:
•    Verifica-se uma grande turbulência em termos globais pondo em causa o nível e estilo de vida da chamada civilização ocidental, assente num consumo sem limites e num estado providência cujas bases se revelaram insustentáveis e irrealistas desincentivando, ao mesmo tempo, a capacidade de iniciativa, criadora e de assumir riscos dos cidadãos.
•    A actual crise não é apenas de dinheiro / dívidas soberanas, mas é sobretudo uma crise de valores, pois foi a falta destes ou a sua relativização que levou camadas cada vez maiores da população a tornarem-se mais pobres e vítimas do desemprego, enquanto os ricos aumentaram escandalosamente as suas fortunas.
•    As populações perderam a confiança nas suas élites políticas, financeiras e empresariais, que consideram culpadas e cúmplices entre si da actual crise.
•    As novas gerações, mais formadas e informadas, tornaram-se mais exigentes na conduta dos seus dirigentes, na forma como estes gerem os bens públicos e comunicam/explicam as suas decisões aos cidadãos.
•    São cada vez maiores as exigências de controlo externo das Organizações, que já não é feito apenas pelos auditores externos, mas também, entre outros, pelas agências de notação financeira, social, ambiental de qualidade e reguladores. Por esta via as empresas mostram e afirmam, voluntariamente, às partes em presença e interessadas, o carácter legítimo das suas expectativas em termos de desenvolvimento duradouro e de responsabilidade social.
•    Novas tecnologias, desemprego massivo, perda de soberania para entidades internacionais (UE, ONU, IFAC, etc.), falência do estado providência, emergência de novas potências político-económicas e mobilidade profissional e geográfica dos cidadãos, são outros aspetos a ter em conta.
Estas condições, apesar de complexas e difíceis, são também um desafio e oportunidade estimulante e desafiadora para os profissionais autónomos, como é o caso do TOC/ROC, pois incentivam o trabalho por conta própria ou em associação com outros colegas, embora com a crescente responsabilização dos seus agentes e organizações profissionais, enquanto entes de interesse público, em especial no plano ético.


2. Papel  e responsabilidade social dos contabilistas na sociedade
A importância sócio-económica dos seus papéis encontra expressão na sua influência no processo de gestão das organizações, que leva à criação e distribuição da riqueza gerada, tendo por base "informação verdadeira e apropriada” que processam, verificam e que é colocada ao serviço dos vários utilizadores, nomeadamente externos. Esta informação é um bem público, sendo que, por outro lado, a auditoria é um bem coletivo, daí que esta não deva ser financiada pelos seus utilizadores externos.
A complexidade, variedade e qualidade dos conhecimento exigidos, o alcance e a utilidade da contabilidade, como instrumento de gestão, controlo e de predição, no plano sócio-económico, público e privado, constituem as bases do reconhecimento dos contabilistas como profissão autónoma, a exemplo dos médicos, advogados e engenheiros, sendo hoje reconhecido que os seus níveis de exigência estão em paralelo com os daqueles.

3. A cultura geral é uma componente relevante para o desempenho  profissional e ético do contabilista
 Uma das acusações que fazem aos Contabilistas é a de sermos incultos – o não estarmos só não nos deve tranquilizar (os saudosos professores Gonçalves da Silva, A. Lopes de Sá e Rogério F. Ferreira lutaram contra esta situação, com a autoridade que lhes advinha de serem cidadãos extremamente cultos). De facto, uma boa cultura geral, em minha modesta opinião, torna a nossa mente mais aberta, erudita e sensível às questões e dilemas que temos que enfrentar, interpretar e resolver, reforçando as nossas vertentes criadora, ético-moral e humanista, colocando as questões técnicas no seu devido lugar, não nos deixando ultrapassar e subjugar por elas.
Neste aspeto convém referir que o significado cultural da contabilidade foi, entre outros intelectuais, enfatizado pelo grande poeta alemão Joham Wolfgang Goethe (1749-1832) ao considerar na sua obra de ficção educacional Wilhelm Meister (1795-1796) «o sistema contabilístico da dupla entrada como uma das mais importantes (finest) descobertas da inteligência humana» (Mattessich, 1995: 37).

4. O conhecimento e a sensibilidade ético-moral são essenciais a um  desempenho de excelência dos contabilistas
Embora considere que a ética está subsumida na moral, entendo que convém diferenciá-las do ponto de vista: (a) filosófico para percecionar, de forma racional, as diferenças entre o bem e o mal; (b) teológico, porque as religiões têm por essência a moralidade e, (c) pedagógico, para melhor poder orientar o ensino/aprendizagem das questões ético morais.
 A moral e a ética visam, estudam e investigam a prática do bem em detrimento do mal, e o direito a estrita observância da legalidade. Esta, desejavelmente, deve expressar os padrões ético/morais vigentes nas sociedades, tornando estas mais humanas e socialmente viáveis, ao estimularem a convivência pacífica, evitarem ou dirimirem os conflitos. Convém ainda referir que a ética e a moral são idênticas tanto para as elites como para o cidadão comum, o mesmo é dizer que a ética não é a moral das élites, da mesma forma que a moral não é a ética do cidadão comum.
Dentro deste espírito e em síntese diremos que: (1) a moral é concreta e de aplicação automática (está codificada na Bíblia, Corão, Talmude, etc.); (2) a ética é racional e abstrata, implicando reflexão e escolha - o que, diga-se, dá trabalho!; (3) o direito e a jurisprudência, que conjuntamente com a moral,  asseguram a convivência social, através da lei das leis - as Constituições Politicas, e da legislação nelas enquadradas, que se aplica, coercivamente, ao contrário da moral.
Estas breves considerações relativamente à moral e à ética destinam-se a mostrar quão importantes são, a meu ver, estas questões, para além do direito, para os contabilistas, pois não só os incentivam à prática contínua do bem, como colocam à sua disposição um conjunto de recursos, expressos nas suas diferentes teorias e estilos, que os ajudam nos seus julgamentos morais e, concomitantemente, a encontrar solução para as questões ou dilemas que enfrentam.
Assim, cada uma das teorias ou estilos da ética e seus autores procura defender os seus próprios critérios, para fundamentarem as suas conceções de bem e de mal, e as decisões que tomam. As teorias da ética agrupam-se em duas grandes correntes:
a) As consequencialistas de cariz teleológico que «admite que há no mundo uma finalidade que superiormente orienta o comportamento dos agentes», daí centrar o julgamento e a decisão moral na avaliação das escolhas e das suas consequências, optando pela escolha que produza as melhores consequências, i.é melhor bem enquanto aspiração à felicidade (Canto-Sperber, Coord., 1996: 329 e Fernandez, 1994: 76)(v.g., utilitarismo do ato e da regra e o egoísmo).
b) As não consequencialistas de cariz deontológico ("o dever” de Kant) que se preocupam com outros aspetos subjacentes à ação moral e não apenas com as consequências, sustentando que «certos atos são moralmente obrigatórios ou proibidos, sem ter em atenção as suas consequências», daí que considerem que «um ato é moralmente bom, se e somente se for executado "por dever” ou pelo respeito pela lei», i.é o bem não é exterior à vontade (Canto-Sperber, Coord., 1996: 403)(v.g., Imperativo categórico de Kant/deontologia, teorias da Justiça, dos direitos morais).
Assim, consideremos a hipótese de uma empresa cujo TOC todos os anos recebe uma gratificação relativa aos  lucros. Porém, no último exercício verificou-se um prejuízo ou um lucro irrelevante. Caso o TOC, como parte também interessada, distorça as contas para gerar os lucros suficientes para o fim em vista, segue a via utilitarista, caso exija absoluta conformidade com o direito contabilístico e demais legislação, segue a deontologia, "o dever” de cumprir a ética e a lei.
Solomon e Hanson (1989: 106 a 107) descrevem-nos de forma sintética alguns estilos de ética que, no seu conjunto, encontram expressão nestas duas grandes correntes das teorias éticas, como a seguir se descrevem:
1 -    A regra antes de tudo (deontologia) – obediência à lei, à regra, ao princípio
2 -    Utilitário (utilitarista) – consequências para todos
3 -    Lealista – a empresa primeiro
4 -    Prudente – a nossa vantagem a longo prazo
5 -    Virtuoso – a reputação primeiro
6 -    Intuitivo – julgamentos espontâneos
7 -    Simpático – coloca-se no lugar do outro
8 -    Darwinista – o que sobrevive à razão
        Os primeiros cinco estilos, embora em graus diversos, aplicam-se, em meu entender, aos contabilistas encontrando-se, em geral, englobados na sua deontologia profissional que envolve:
•    A organização representativa dos profissionais autónomos
•    O conjunto de regras dos profissionais autónomos
•    A aplicação e vigilância do cumprimento daquelas regras
•    A regulamentação do contencioso subjacente à violação daquelas regras.
Qualquer destes aspetos não deve, nem pode de modo algum, ser confundido com a defesa de eventuais interesses corporativos, mas antes como um garante inequívoco:
•    Da integridade do profissional
•    Da qualidade do seu trabalho
•    De um estímulo à sua valorização técnico-profissional e humanística
(Danvers, 2008: 99 a 110).
Os códigos de ética e deontologia profissional embora não prevejam todas as situações envolvem todas estas vertentes não havendo, porém, consenso quanto a privilegiarem o teor positivo, "o que deve ser feito”, ou negativo, "o que é proibido”. Também considero, como Rego et al. (272 a 274), que deverá prevalecer a vertente negativa, mais responsabilizante, pois nela profissional não poderá invocar que desconhecia a regra, enquanto a teoria positiva pode levar ao «pressuposto de que é permitindo tudo o que não é expressamente proibido».

5. Qualidades inerentes ao bom desempenho ético e técnico-profissional do contabilista dos nossos dias.
O contabilista deve estar consciente que «o profissionalismo é a maneira íntegra e honesta de exercer uma profissão», o que implica uma ligação fundamental «à ética, à moral e aos bons costumes» (Plácido, 1997: 111). Este aspeto é reforçado pelo conjunto de qualidades que, em geral, qualquer contabilista deve possuir e cultivar, pois para além da exigência de deveres ético-morais adicionais está sujeito aos de qualquer cidadão comum.
Essas qualidades são as seguintes
•    A honestidade que é a mais relevante e conectada com as demais – dizer e zelar pela verdade e saber resistir a propostas desonestas por mais tentadoras que sejam.
•    A competência, para poder potenciar as demais qualidades, nomeadamente a integridade e a independência.
•    A produtividade: saber planear, dirigir, controlar, procurar a excelência e cumprir as metas nos prazos acordados.
•    A imparcialidade: deve saber estar equidistante dos interesses em presença, inclusive dos próprios, i.é., deve assumir uma posição neutral face aos interesses conflituantes, dando corpo à sua independência profissional.
•    A lealdade: para com os clientes, colegas de profissão e os superiores interesses da sociedade, qualidade essencial às relações de confiança entre as partes.
•    Saber pleitear: para melhor argumentar em defesa dos seus pontos de vista o que inclui, obviamente, saber dizer NÃO, mas sempre de forma fundamentada, sem qualquer preconceito ou reserva mental.
•    A responsabilidade (Accountability): fazer da prestação de contas do seu trabalho um hábito consciente e livremente assumido.
•    Ser culto e possuir a curiosidade intelectual que deve ser apanágio
dos profissionais autónomos e que a diversidade e complexidade dos conhecimentos impõe.
•    Estar atualizado e bem informado nos planos económico, político e social, para além do profissional, o que é importante para a sociabilidade pois facilita a sua interação com os diferentes interlocutores, tornando mais fácil e seguro o desempenho profissional.
•    Possuir o conhecimento adequado do negócio/atividade em que exerce a profissão, bem como o seu meio envolvente, para melhor aferir o seu posicionamento no mercado, particularmente quanto ao presente e futuro.
•    Cultivar permanentemente o pendor ético e não apenas o técnico-profissional, aprofundando o conhecimento das diversas teorias da ética: consequencialistas e não consequencialistas, não se cingindo apenas à vertente deontológica da profissão ("o dever”), mas tendo presente que para além de outras, a virtuosidade é uma das qualidades fundamentais dos contabilistas uma vez que os que a possuem, são pessoas que praticam o bem em obediência aos padrões da moral, individual e coletiva.
Neste contexto convém referir as quatro virtudes seguintes (Regojo, 2005: 133 a 153):
•    A prudência: implica praticar o bem, independentemente dos resultados para nós das escolhas feitas.
•    A justiça: cumprir os nossos deveres para com a sociedade.
•    A temperança: ponderar devidamente as decisões e as suas consequências para os outros e aceitar as suas críticas.
•    A fortaleza: inclina-nos a firmeza e tenacidade na busca do bem …, ajudando-nos a superar obstáculos e as dificuldades.
É importante referir que as virtudes «não correspondem a capacidades inatas, mas antes a disposições treinadas e exercitadas que se tornam parte do próprio indivíduo» (Rego et al., 2007: 86 e 87 e Canto Sperber, Coord., 2001: 1671 e 1672).

6. Razões que justificam o contabilista como profissão autónoma e maiores exigências em termos de padrões de qualidade e éticos, em relação às profissões que não o são:
•    Possuírem, para além de uma formação académica de base, um conhecimento altamente complexo e de acesso restrito (conhecimento arcano: que constitui um profundo segredo) assente numa linguagem própria (jargão).
•    Controlarem o acesso à profissão e a sua vertente disciplinar.
•    Desempenharem funções de interesse público.
•    Usufruirem de grande prestigio  a nível profissional e sócio-económico que lhes é social e politicamente reconhecido através da concessão de autonomia da profissão e à exigência de que aqueles conhecimentos e prerrogativas não «constituem uma margem para se submeterem à toda poderosa técnica nem a legislação de duvidosa moralidade e justiça, para não violarem os sentimentos éticos, que nem a técnica, nem a ciência ou a legislação podem substituir, visto que o poder da técnica pode levar os profissionais a não serem mais um ser humano na sua responsabilidade e na sua liberdade» (Bega, 2008: 41 e 42).
Neste contexto, os cidadãos e o Estado têm que estar atentos à forma como pode ser utilizado o excesso de poder concentrado nas profissões autónomas e suas organizações, o qual se não for controlado pode ser permicioso até para os próprios (v.g., falência de Arthur Andersen), daí a importância das entidades de supervisão externa, para além do controlo/supervisão interna, da comunicação social e da opinião pública.

7. O processo de decisão ética em geral e na contabilidade em particular
A decisão ética pressupõe que o agente tenha sensibilidade ética. Segundo o Prof. J. R. Rest, a sensibilidade ética «é a capacidade do indivíduo interpretar uma dada situação e se dar conta da existência de um problema moral».
Assim, segundo este autor, um indivíduo para se comportar de maneira ética deve percorrer quatro etapas:
«1º Deve interpretar uma dada situação como um problema ético, identificando as opções possíveis e suas consequências;
  2º Deve decidir qual a opção correta do ponto de vista moral;
    3ºDeve ter vontade (inequívoca) de se comportar de maneira ética, ainda que o seu próprio interesse lhe dite uma atitude contrária;
    4º Deve ter uma força de carácter suficiente para se comportar de maneira conforme a sua intenção ética» (Hauret, 2003: 112).
Neste contexto diremos que:
•    No exercício das suas funções os contabilistas, para além do direito contabilistico e dos demais ramos do direito e conhecimentos que lhe são exigidos, devem estar também sensibilizados e preparados para a tomada de decisões éticas, para resolverem questões ou dilemas éticos (conflito de interesses), enquanto preparadores e verificadores de informação financeira – um bem público.
•    O processo de decisão ética exige julgamentos morais prévios que «deverão ser lógicos, baseados em factos e assentes em princípios morais válidos» (Shaw, 1991: 71). Este processo é facilitado pelo facto dos «seres humanos serem dotados de capacidade de escolha – uma liberdade de agir ou não e de uma autonomia, sendo capaz de refletir e tomar decisões», (Bega, 2008: 39), o que significa que a liberdade é um pressuposto essencial à responsabilidade, pois quem a não tem não pode ser responsabilizado.
Concluindo direi que, a meu ver, o processo de decisão ética, envolvendo também os contabilistas, engloba as seguintes fases: (1) origem do problema ético; (2) reconhecer o
 problema ético; (3) dados para o julgamento ético; (4) identificar os aspetos mais importantes do problema ético; (5) aplicação dos princípios e teorias éticas às várias opções; (6) Julgamento moral,individual ou colegial, centrado nas questões relevantes; (7) escolha da decisão ética ; (8) Aplicação/Ação.
É importante referir ainda que qualquer modelo de decisão ética deve ser complementado «com uma boa comunicação interna e externa, inerente ao bom êxito da ética, já que o rumor e a incerteza são contraproducentes» (Vallence; 1995:52).

8. Alguns aspetos da ética em contabilidade - SNC
•    Desde tempos imemoriais que a contabilidade teve preocupações éticas envolvendo a criação, gestão e distribuição da riqueza criada, quer se trate de bens materiais ou imateriais, salários, impostos lucros ou subsídios/apoios sociais, etc.
•    Estas funções têm um profundo cunho ético-moral e a contabilidade tem aqui uma importante função social – assegurar que a vida económico-financeira se desenvolve dentro de padrões, princípios e valores conformes à dignidade humana, no seu todo e não apenas para um conjunto de privilegiados.
•    Para o conseguir, a contabilidade foi progressivamente construindo um conjunto de teorias, técnicas, princípios, regras e procedimentos que, sucessivamente, procuraram responder aos desafios lançados pelo desenvolvimento económico, moral, político e cultural no decorrer dos tempos.
•    Este conjunto de teorias, técnicas, princípios, regras e procedimentos englobam aquilo a que hoje chamamos o Direito Contabilístico que «integra o ramo do Direito Privado» que rege a contabilidade (SNC), os contabilistas (OTOC) e os auditores (OROC),  (E. Du Pontiavicc, 1982, citado por Lauzaingheim, Navarro e Nechelis, 2004: 1).
•    Ao direito contabilístico estão associados outros ramos do direito, nomeadamente os Direitos Fiscal, Comercial, das Sociedades e Criminal, para além de um conjunto apreciável de matérias que têm que dominar (economia, finanças, estatística, cálculo atuarial, tecnologias da informação, entre outras).
•    O enquadramento teórico-prático e legal referido, se devidamente observado, levará, com elevado grau de razoabilidade – pois estamos no domínio das ciências humanas e não das exatas – a que as contas expressam de "forma verdadeira e apropriada”:
•    A posição financeira da empresa
•    O desempenho
•    As alterações na posição financeira, satisfazendo, em beneficio dos vários utilizadores, os objetivos das demonstrações financeiras.
•    Aquele enquadramento teórico-prático e legal, no que se refere ao Direito Contabilístico, assenta na estrutura conceptual que fundamenta a elaboração e apresentação da informação financeira, da forma lógica, racionalmente sustentada e consistente, em consonância com a formulação e interpretação das normas emergentes daquela estrutura (IASB/SNC), de índole prescritiva, envolvendo:
•    Os objetivos das Demonstrações Financeiras (DF) (já citados)
•    As características qualitativas das DF
•    A definição, reconhecimento e mensuração dos elementos das DF
•    O conceito de capital e manutenção de capital
•    Podemos concluir que à estrutura conceptual em que se baseia a preparação e interpretação das Demonstrações Financeiras está claramente subjacente, quer na sua letra e no seu espírito, quer através dos seus normativos, uma clara preocupação ética, o que está em conformidade com a importância para as comunidades das entidades que gerem recursos com os quais produzem e distribuem bens, serviços e riqueza à comunidade – cidadãos, organizações e estado.
•    A estrutura conceptual e as normas que nela se enquadram são indispensáveis para prevenir ou minimizar problemas com que os contabilistas se confrontam consubstanciados por «potenciais perigos de preconceito/parcialidade, interpretações erradas e ambiguidades», objetivos que são reforçados pela sua aceitação e prática universais, impedindo que qualquer entidade elabore as  suas próprias normas, daí a sua relevância para a verdade e comparabilidade das contas.
•    As normas e a competência técnica são importantes mas não suficientes para defrontar e decidir os problemas éticos na senda da opção correta.
Para tal é imprescindível que lhe associemos um continuado desenvolvimento ético, fortalecendo a nossa sensibilidade e consciência morais, para mais facilmente avaliarmos os efeitos potenciais – benefícios ou perdas, e quem os tem ou as sofre – das nossas decisões éticas e, em consequência e fundamentadamente, resolvermos as questões ou dilemas éticos em contabilidade (Kieso e Weigandt, 1998: 19 e 20).
Nesta conformidade diremos que:
•    O pressuposto da periodização económica visa evitar a adulteração do exercício económico, transferindo, indevidamente, operações/valores de um exercício para outro.
Ex. Atingidos os objetivos de vendas em Novembro, contabilizar as vendas de Dezembro no ano seguinte, e inversamente contabilizar em Dezembro as de Janeiro.
•    O pressuposto da continuidade é fundamental, pois significa que não há constrangimentos ao funcionamento normal da empresa, expressando o seu património a situação normal de mercado e não a resultante da redução de atividade ou liquidação, que alteraria a estrutura do balanço – eliminação dos valores a ML. Prazos, constituição de provisões, imparidades, entre outras.
•    A posição financeira, as suas alterações, bem como o desempenho são elementos relevantes não apenas para os acionistas, pois a contabilidade registando o passado, permite a análise tendências que conjugada com elementos não financeiros – v.g., conjuntura económica, financeira, politica e social – auxiliam na previsão do futuro, previsão esta que será tanto mais consistente quanto mais verdadeiras forem as DF.
•    As características qualitativas das DF
Qualidade e ética estão intimamente ligadas e, de algum, modo identificadas entre si. Com efeito, o que não tem qualidade não é ético. Assim, uma informação financeira com recurso à contabilidade criativa no seu sentido negativo ou adulterada, ainda que tecnicamente suportada, não obedece aos padrões éticos e de qualidade, conforme à estrutura conceptual e à tradução de «imagem verdadeira e apropriada» que, dentro de critérios de razoabilidade, as DF devem transmitir.
Assim, compreensibilidade, relevância, fiabilidade e comparabilidade são quatro qualidades das DF em que a vertente ética está claramente subsumida.
•    O reconhecimento dos ativos passivos, rendimentos e gastos e a sua mensuração são também aspetos importantes em termos éticos.
Com efeito, entre as condições para o reconhecimento daqueles itens, encontra a de serem «quantificáveis com fiabilidade» o que, a não suceder, poria em causa a verdade das contas, daí que «fiabilidade» seja a «característica do que é de confiança», logo ético.
A mensuração/ valorização é assim da maior relevância, daí não ser registado o facto patrimonial se a sua quantificação não for fiável, exigindo, porém, que, se  relevante, seja reportada no anexo. (Pode ser o caso de estimar a provisão para a provável indemnização de um processo judicial em curso).
É através da mensuração que se faz, em grande parte, «a cosmética às contas» e se fabricam resultados – daí aqueles que consideram «a contabilidade, matéria essencialmente elástica» com a qual um "bom” contabilista, tanto pode "fabricar”, um bom como um mau resultado.
O SNC dá-nos um conjunto de bases de mensuração aplicáveis a várias situações possíveis que, embora pressuponham a fiabilidade das quantificações e a verdade das contas, têm que ser cuidadosamente analisadas e criteriosamente aplicadas, sob pena de podermos subverter a verdade das contas.
Trata-se de matéria complexa, pelos efeitos no património e nos resultados, daí, porventura, o critério do justo valor, embora adotado pela CNC, não constar da estrutura conceptual do IASB.
A este propósito Alves da Silva (Revista. TOC, 143/2012), chama a atenção para a necessidade de «muito cuidado e ponderação» na aplicação do justo valor para «evitar distribuir resultados não realizados». Refere ainda Alves da Silva que «de uma maneira geral, os normalizadores internacionais rejeitam a ideia de aplicar o justo valor a todos os ativos e passivos», salvo «para ativos e passivos mobiliários (financeiros)». Neste aspeto convém relembrar que os saudosos professores Rogério F. Ferreira e A. Lopes de Sá bem questionaram as consequências da aplicação elástica do justo valor como critério valorimétrico.
•    Manutenção do capital
Quer os utentes dêem prioridade à manutenção do capital nominal investido ou ao poder de compra do capital investido, que dá origem ao conceito de "manutenção do capital financeiro”, quer optem pela manutenção da capacidade de produção da empresa, conceito da "manutenção do capital físico” ambos visam, em minha opinião, tal como o art.º 32.º do C. S. Comerciais, salvaguardar a integridade do capital e do património e o reforço da autonomia financeira e das garantias dos credores da empresa, bem como da sua continuidade, fornecendo bens ou serviços e mantendo ou criando postos de trabalho, objetivos em que a ética está totalmente subsumida.

9.    Exigências e desafios dos SNC aos contabilistas
A densidade, complexidade, profundidade, ambiguidades e soluções alternativas do SNC, acrescem significativamente as responsabilidades dos contabilistas em termos de exigência e rigor nos seus julgamentos/opiniões (v.g., cálculo de estimativas de provisões e outras), impondo-lhes também que tudo façam para que a fiscalidade não distorça a contabilidade e vice-versa.
Neste contexto, o SNC constitui um guia para os contabilistas, o qual deve ser seguido de forma crítica e não automática, o que implica a interiorização e plena observância dos mais elevados padrões:
•    De estudo e preparação técnico-profissional (contínua)
•    De índole ético-moral
•    De desempenho
•    De defesa inequívoca do interesse público
              Estes aspetos são da maior importância uma vez que «a flexibilidade das regras contabilísticas» é o que mais negativamente afeta a independência dos contabilistas» em geral, e dos auditores em particular, (Harley e Ross, 1972). Aquela flexibilidade é devida à existência de «uma larga gama de opções contabilísticas (postas) à disposição dos preparadores (e verificadores) das demonstrações financeiras que tornam mais difícil detetar interpretações abusivas» das normas de contabilidade (Hanret, 2003: 14).
O que acabámos de referir é reforçado pelo facto de a contabilidade atual em que prevalece o justo valor e critérios afins (salvo para as micro entidades) estar mais orientada para a relevância das decisões dos investidores e do mercado de capitais, em detrimento da verificabilidade e objetividade da informação, enfatizando a vertente utilitarista desta. Pelo contrário, a contabilidade ao custo histórico associado à prudência, privilegia a verificabilidade e objetividade (deontologia) no interesse dos credores, em geral, relativamente a relevância, preocupando-se com os efeitos das transações realizadas, enquanto a contabilidade atual está centrada essencialmente no potencial dos benefícios económicos futuros.
Que as opções acuais não serão, porventura, as melhores confirma-o um estudo em curso para substituir as 4ª e 7ª Diretivas da EU (proposta de 2011) ao propor, entre outros aspetos, a ênfase à prudência e ao custo histórico, o mesmo é dizer, dar prevalência à verificabilidade e à objetividade, embora não deixando sopesar devidamente a relevância e o respetivo enquadramento e importância para a tomada de decisão (Lérias, 2012: 129 a 135).

10. Críticas do mundo exterior aos contabilistas,
Devem ser encaradas como um desafio estimulante e uma oportunidade para afirmar a profissão.
•    Em Portugal, vários políticos, intelectuais, académicos e jornalistas têm vindo, com alguma frequência, a denegrir a contabilidade e os contabilistas, dizendo, explicita ou implicitamente, que são insensíveis, apenas preocupados com a rigidez dos números, poucos cultos e pouco preocupados com os sentimentos humanos – «há mais vida para além do orçamento». Haverá mesmo? Onde se vai buscar o dinheiro? Cada coisa no seu lugar!
•    Neste aspeto convém lembrar àqueles e aos demais concidadãos que aos contabilistas é exigida uma formação académica de base que não os envergonha, para além de um exame de acesso à profissão. Por outro lado, o exercício das diferentes variantes da profissão exige-lhes um conjunto complexo de conhecimentos/competências que implicam treino e formação permanente. Estas competências associadas ao interesse público dos serviços que os contabilistas prestam à comunidade levou a que o Estado lhes conferisse o estatuto de profissão autónoma.
•    Por outro lado e pese a frieza dos números, é indubitável que como o Dr. Rui Rio demonstrou, apesar de lhe terem chamado contabilista para o denegrir, que se o país fosse gerido por contabilistas, talvez agora estivéssemos como a Câmara do Porto, com saúde no plano económico-finaceiro e melhor desempenho ético.
Isto prova que o prestigiado poeta alemão Goethe sabia do que falava quando referiu, como já citámos, a importante descoberta do sistema da partida dobrada.  Por isso era bom que não apenas os contabilistas, mas todo e qualquer cidadão, e em particular os políticos, soubessem que aquele sistema para além de «disponibilizar um quadro explícito de análise que permite comparar os custos e os benefícios de qualquer entidade, tem como vantagem refrear o otimismo, conter os desvarios, evitar as loucuras e moderar os excessos» (Arroja, 31-3-96).
Assim sendo, os contabilistas para enfrentarem os desafios do futuro, para além de elevados padrões de desempenho ético e técnico-profissional e de lutarem por uma maior representatividade nos órgãos reguladores (CNC, CNSA, IFAC, FEE), deverão:
•    Ser profundamente honestos para consigo próprios e para com os outros, potenciando a sua sensibilidade ética
•    Não esquecer que a cultura especializada, não dispensa, antes exige uma boa cultura geral, sensibilidade e conhecimentos no domínio das humanidades e em particular nas questões ético-morais
•    Ser mais assertivos e interventivos, quer junto da opinião pública quer das demais entidades, sem esquecer o poder político
•    Ser persuasivos e capazes de dizer NÃO – logo à primeira vez… independentemente das pressões que sobre eles recaiam
•    Cultivar a imaginação e a criatividade no sentido mais nobre da profissão, não temerem a mudança, não serem conformistas, defensivos, inflexíveis e obcecados com os detalhes e inibidos, tendo sempre presente que:
a)    Conforme dizia Albert Einstein, «a curiosidade é fonte de criação» (Wickert, 2011: 124)
b)    «A criatividade contribui para o sucesso profissional da contabilidade» (Park, 1958, citado por: Bryant, Stone e Wier, 2011: 46) e não para denegrir a sua imagem
c)    Estudos feitos nos arquivos do Dep.º do trabalho dos USA indicam que «o trabalho dos profissionais de contabilidade não exige menos criatividade que as três profissões que competem com os contabilistas»: saúde, advocacia e engenharia, (Bryant, Stone e Wier, 2011: 47) – um estímulo, mas sobretudo um desafio a confirmar no dia-a-dia dos contabilistas…
Nestas circunstâncias é um dever indeclinável dos contabilistas estarem atentos e responderem, sem arrogância, mas firme, fundamentada e tempestivamente não apenas àqueles que no nosso país minimizam a profissão, mas também a nível global (os escândalos de todos conhecidos não ajudam), como é o caso do psicólogo humanista Abraam Maslow (Maslow et al. 1998), citado por Bryant, Steve e Wier, 2011: 46, que «argumenta que os contabilistas têm o mais pequeno vocabulário de uma profissão, não possuem criatividade, receiam a mudança e são a mais obsessiva das profissões»…
Cabe-nos a nós e às novas gerações de Contabilistas sermos tolerantes, mas não subservientes para com os nossos críticos, refletir sobre o grau de veracidade das suas opiniões ou dos seus preconceitos, corrigindo-nos ou corrigindo-os com factos e de forma assertiva, quando for o caso, e aproveitar esta situação fazendo dela um forte adjuvante e incentivo à mobilização coletiva em ordem ao progresso e afirmação dos contabilistas junto da comunidade, das demais profissões autónomas e dos nossos críticos.

A fechar…
«As dificuldades e os obstáculos são uma fonte preciosa de força e saúde para qualquer comunidade»                               
                 Albert Einstein (1879-1955) (Wickert, 2011: 112).


*Prof. Coord. (S/A) Jubilado do ISCAL

(Maio/2012)


Em tempo:
Texto da intervenção feita na Homenagem ao saudoso, Grande Amigo e distintíssimo Prof. Doutor R.F.Fereira, associada ao "Dia do ISCAL”. Uma excelente e justa iniciativa em parceria, ISCAL/OTOC.


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