As 4786 empresas não financeiras da Zona Franca da Madeira declararam ter tido, em 2001, cerca de 8,5 mil milhões de euros de receitas declaradas. Apesar desta praça funcionar desde 1988, a Direcção Geral de Contribuições e Impostos (DGCI) «apenas reconhece como inseridos na Zona Franca da Madeira menos de um terço do universo real em causa». Os serviços de IRC responsabilizam os dos Benefícios Fiscais, os quais afirmam ter detectado a situação no início deste ano. Por seu lado, a Sociedade de Desenvolvimento da Madeira (SDM), concessionária da Zona Franca e participada pelo Governo Regional, não possui um cadastro actualizado nem zela pelo cumprimento da lei, o que contraria o próprio contrato de concessão.
Estas conclusões extraem-se de uma auditoria de 2001 da Inspecção-Geral de Finanças (IGF), terminada em Junho deste ano, ao universo das empresas não financeiras da Zona Franca. Mas a sua apreciação por parte do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, segundo fonte oficial, «ainda não se encontra concluída». As lacunas de informação verificadas são, porém, muito profundas e estão na base do vasto incumprimento fiscal detectado e de uma potencial utilização abusiva de benefícios fiscais, o que contraria a ideia defendida pela SDM e pelo Governo Regional e vai ao encontro das suspeitas da Comissão Europeia.
Na origem deste «buraco» na rede, poderá estar, segundo os autores da auditoria, um desinteresse da máquina fiscal. «A identificação do universo global de sujeitos passivos que operam no âmbito da Zona Franca da Madeira e do risco tributário que lhes possa estar associado não constitui, até à data, uma preocupação específica de controlo da DGCI», refere-se. Os seus serviços estão «quase exclusivamente» virados para o controlo tributário das instituições do sector bancário e financeiro.
Os serviços tributários consultados reconheceram a verdade, concordaram com as conclusões e com as recomendações feitas. Em concreto, sugeriu-se a alteração das declarações cadastrais e a «criação de uma obrigatoriedade legal» da SDM de comunicar anualmente à DGCI a identificação das entidades autorizadas. Propôs-se ainda a revogação da autorização às entidades que não tenham proveitos em dois anos seguidos e, ainda, que caduquem automaticamente os benefícios concedidos às entidades que não cumprirem as obrigações declarativas. Mas o Governo ainda nada decidiu.
Os serviços de IRC discordaram, entretanto, desta última proposta por ser «demasiadamente ambiciosa e muito penalizadora». E, quanto a responsabilidades, alegam que a gestão dos benefícios fiscais está a cabo dessa direcção de serviços, «pelo que qualquer alteração cadastral ou outra a empreender deverá ser proposta e empreendida por parte da mesma».
Já os serviços de Benefícios Fiscais referem não ter sido surpreendidos. «Grande parte das conclusões constantes no relatório em análise não constituem novidade para esta Direcção de Serviços, uma vez que já tínhamos concebido e desenvolvido um trabalho semelhante» para o exercício de 2000, «em que obtivemos conclusões também idênticas». A informação 489/03, em que consta essa conclusão, é de 14 de Março passado, mas o Ministério das Finanças não esclareceu que destino lhe foi dado. Também ficou por esclarecer ao PÚBLICO se o director-geral dos impostos ou o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais tomaram conhecimento dessa informação e, em caso afirmativo, que medidas foram adoptadas.
O relatório da IGF foi comunicado aos serviços tributários em Junho e fonte oficial do Ministério garante que o secretário de Estado apenas tomou conhecimento dele em Setembro passado e que o Orçamento de Estado de 2004 perturbou esse exame, pelo que não foram até agora tomadas medidas. Na Madeira, o Governo Regional e a SDM não comentam a existência de quaisquer irregularidades, alegando desconhecimento do relatório.
Lacunas graves
As insuficiências começam com a informação cadastral disponível, a qual «inviabiliza uma identificação directa, fiável e completa» das empresas. A DGCI reconhece «apenas os sujeitos passivos que apresentam o anexo F da declaração anual, no qual tenham assinalado que auferiram os respectivos benefícios fiscais no âmbito do IRC».
Para a IGF, isso «é manifestamente insuficiente», já que o regime fiscal desses sujeitos passivos não os dispensa de apresentar, anualmente, quer a declaração periódica de rendimentos, quer a declaração anual de informação contabilística e fiscal, além de terem de pagar o pagamento especial por conta, estando sujeitos a «colecta mínima» fixada por lei. Há ainda outras insuficiências: um sétimo dos sujeitos passivos inscritos não indicou técnico oficial de contas.
«Perante as limitações detectadas (...) optou-se por recorrer a informação alternativa», refere-se no relatório. Bateu-se à porta da Conservatória do Registo Comercial Privativa da Zona Franca da Madeira e da SDM. A SDM é uma sociedade anónima de direito privado, participada pelo Governo Regional da Madeira (10 por cento) e pelo grupo Pestana, um dos maiores grupos nacionais com actividade no turismo (90 por cento).
Mas, apesar de a lei - citada pela IGF -obrigar a entidade responsável pela concessão da Zona Franca «a organizar um cadastro de utentes (registando a instalação e funcionamento de cada uma das entidades licenciadas) e a respeitar e fazer respeitar todas as leis, regulamentos e instruções atinentes àquela zona», não foi que isso que a auditoria verificou. «A informação obtida daquelas entidades, não sendo especialmente vocacionada para os objectivos de controlo fiscal, enferma de muitas insuficiências/deficiências, conexas, no essencial, com a existência de registos de entidades licenciadas identificadas com números fiscais inválidos ou sem a correspondente identificação fiscal, com processos de constituição ainda não concluídos e com a ausência de alguns dados relevantes.» Entre eles: datas de constituição, de revogação de licença ou de cancelamento de registos, cuja falta «dificultam a determinação do universo das entidades \activas\ no decurso do exercício de 2001».
Apesar disso, a SDM cobra taxas de instalação (entre 500 e 750 dólares norte-americanos), taxas anuais de funcionamento (a partir de mil dólares, 25 mil no caso de instituições financeiras, 2,5 por cento dos lucros para SGPS), além das taxas nas zonas industriais (750 dólares e entre 13,5 e 30 dólares por metro quadrado).
Milhares de empresas inactivas
Os Números da Evasão Fiscal
Em 2001 existiam 4786 entidades na Zona Franca da Madeira, em serviços internacionais (designadamente Sociedades Gestoras de Participações Sociais), a Zona Franca industrial e o registo internacional de navios.
Quase metade (42,5 por cento, ou seja, 1.999 entidades) não apresentou a declaração periódica de rendimentos para efeitos de IRC, obrigatória mesmo para as abrangidas pela isenção. E dois terços não entregaram declaração anual. Em contraponto, cerca de 91 por cento tem cumprido as declarações em sede de IVA. Mas, destas, apenas 1789 apresentaram declarações periódicas com valores, tendo as restantes apresentado a declaração com zeros.
Esta situação indicia que 2512 empresas terão estado inactivas e que funcionarão, segundo a IGF, como empresas «em carteira» para beneficiar do regime anterior a 2000, mais condicionado na sequência da intervenção da Comissão Europeia. A IGF sublinha o forte crescimento do número de entidades criadas em 1999 para 2000, adiantando que esses casos deveriam ser acompanhados para evitar que sejam usadas como «interposições fictícias», como forma de reduzir lucros tributáveis de outros sujeitos passivos.
Das entidades que apresentaram a declaração de IRC, os seus proveitos declarados ascenderam a 8,5 mil milhões de euros, muitas vezes mais que os proveitos obtidos por agências ou delegações de instituições de crédito e sociedades financeiras sedeadas no continente (1,7 mil milhões em 1998). É este facto que - face à despesa fiscal que lhe estará subjacente - justifica, para a IGF, preocupações de controlo especificamente dirigidas a esta realidade tributária.
Outra situação tida como «fora da normalidade expectável»: apenas 2,5 por cento (116 entidades) apresentou em 2001 o anexo J da declaração anual relativo aos rendimentos pagos e objecto de retenção na fonte, o que é tido como estranho, já que todas as entidades que operam na Zona Franca «serão devedoras de rendimentos a entidades residentes, no mínimo aos respectivos técnicos oficiais de contas». Mas apenas um terço daquelas reteve na fonte. Só treze entidades pagaram a não residentes.
Dos 2701 sujeitos passivos declarantes de IRC, 2524 assumem que a totalidade dos seus proveitos está isenta de IRC, o que abrange um conjunto de proveitos de 7,1 mil milhões de euros, ou seja, 83 por cento do total de 8,5 mil milhões. Desta quantia, cerca de 13 por cento é apenas relativo a 18 entidades que, por sinal, não apresentaram declaração periódica de IVA, o que só era possível legalmente a metade desse grupo.
Cruzando os valores declarados entre IRC e IVA, verificou-se que 48 sujeitos passivos declararam proveitos em sede de IRC num montante global de 1,75 mil milhões de euros que não tinham correspondência nas declarações de IVA