O conceito de responsabilização na Administração Pública assenta muito mais em pressupostos de rentabilidade e, substancialmente menos, e consequentemente, no exacerbamento da fé pública que está subjacente ao seu relacionamento com os cidadãos. Os princípios de igualdade de tratamento dos cidadãos perante a lei são remetidos para um plano secundário. Um caso paradigmático pode ser encontrado numa situação verídica, em que um alto responsável responde a um contribuinte que, de seguida, reproduzimos com a máxima fidelidade possível: um sujeito passivo viu-se confrontado com a liquidação errada de um tributo, tendo reclamado perante a instância competente. Ao ser confrontado com a instauração do processo executivo, deslocou-se ao competente serviço solicitando a resolução da sua reclamação, tendo obtido como resposta que, logo que fosse possível, seria dado despacho ao seu protesto, mas que, primeiramente, havia que garantir a dívida do processo de execução.
Esta resposta é, para ser cordial, verdadeiramente surrealista, na medida em que o contribuinte cumpriu com a sua obrigação. Senão vejamos: a Administração Fiscal cometeu um erro de soma ou de natureza técnica e o contribuinte, para além de ter que reclamar sobre um facto que não praticou, estando assim isento de qualquer responsabilidade, ainda é obrigado a prestar uma garantia para garantir o erro dos outros. Incompreensível.
E o que é que acontece ao funcionário que cometeu o erro? Passe a ironia, estamos em crer que porventura ainda será agraciado com um louvor, porque, já se sabe, errare humanum est.
Os valores que estão na base deste comportamento devem assustar-nos fortemente, pois, caso se consagre esta doutrina, os contribuintes ficam completamente desprotegidos em relação à prática dos actos levados a cabo pela Administração Pública.
Mas, se analisarmos bem as normas fiscais aplicáveis, a Lei Geral Tributária (LGT) e Código do Processo e do Procedimento Tributário (CPPT), constatamos que não existe nenhuma disposição que obrigue os contribuintes a garantir uma dívida, que não é certa e, por tal facto, não é exigível.
Na verdade, a única referência que existe quanto às dívidas reclamadas, é a constante do artigo 68.º do CPPT, quando menciona que a reclamação graciosa não tem efeitos suspensivos. Contudo, a exigência feita pelos serviços de prestação de garantia para actos tributários reclamados, contradiz os princípios que sustentam o próprio acto de reclamação.
Regressando ao famigerado artigo 68.º do CPPT, nele pode ler-se que a reclamação graciosa tem por objectivo a anulação total ou parcial do acto tributário. Ora, é o próprio princípio que sustenta o mecanismo que aceita a possibilidade de, através do seu uso, o acto tributário ser anulado ou alterado.
Então, se são esses os princípios e objectivos do mecanismo de reclamação graciosa, então é ele mesmo, o mecanismo, que coloca em crise o tributo liquidado e, consequentemente, não faz qualquer sentido estar a exigir que se preste uma garantia de um acto e valor que a própria Administração Fiscal entende não ser certo, pois admite a sua alteração. Logo, por não ser certo, não é exigível.
A reclamação graciosa é o meio previsto na lei para que o contribuinte, acto pelo qual se discorda e procura convencer uma das partes, da incongruência ou ilegalidade da acção nos termos do descrito, o tributo, embora liquidado, não é, no entanto, aceite pelo sujeito passivo, o que lhe introduz a característica de inseguro e contraditório.
PS: Obviamente que existe o reverso da medalha da situação aqui descrita e que ficou bem patente na apresentação, na passada segunda-feira, dos resultados do combate à fraude e evasão fiscais de 2006: o aumento da eficácia e eficiência na arrecadação de impostos é uma realidade indesmentível, pese embora o crescimento do volume das dívidas globais. Sintoma de que vai levar muitos anos até que a Administração Fiscal recupere o tempo perdido. A paciência e a persistência, por parte dos responsáveis da «máquina» fiscal, não podem esmorecer ou vacilar. Prometemos voltar ao assunto nas próximas semanas.