Contabilista – A proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2025 é entregue pelo governo na Assembleia da República, precisamente no dia em que falamos. O IRC e o IRS Jovem têm dominado o debate. O que lhe parece o foco excessivo nestas duas medidas, deixando à margem uma apreciação global do documento?
Luís Aguiar-Conraria – Numa fase inicial, o governo encaminhou para a Assembleia da República, sob a forma de proposta de lei, a legislação relativa ao IRS Jovem e à descida do IRC, que se converteu na base da negociação do executivo com o Partido Socialista (PS) com vista à viabilização do OE 2025. Estas temáticas tornaram-se o foco central do debate, convertendo-se nas “linhas vermelhas” do principal partido da oposição. E, por isso, dá-se este paradoxo de já estarmos fartos da discussão do Orçamento, quando este ainda nem sequer foi apresentado. Na minha opinião, as leis fiscais não deviam ser discutidas no âmbito do Orçamento, visto serem uma matéria mais estrutural, mais profunda, relacionando-se com a competitividade do país para a próxima década, ao contrário do Orçamento que é um mero instrumento de gestão com uma validade anual.
O debate e a negociação têm sido muito impregnados pela ideologia em detrimento do interesse nacional?
É taticismo político. No essencial sobre estas medidas, PS e PSD até convergem. O que vejo é diferenças de estilos na concretização das medidas. Vamos por partes: no IRS Jovem são ambos a favor da importância que é preciso dar a este instrumento. No IRC, é mais aquilo que os separa, mas ambas as forças partidárias concordam que é preciso aliviar impostos nas empresas. O PS tem uma visão mais dirigista das empresas, pretendendo que a redução fiscal se reflita nomeadamente em termos salariais. Mas é preciso que se diga o seguinte: o governo também ousou mexer num aspeto muito original do nosso sistema fiscal, introduzido em grande medida por governos socialistas anteriores, que é a progressividade do IRC. À medida que os lucros das empresas aumentam começam a entrar derramas estaduais. Esta progressividade deixa este imposto quase à imagem do IRS.
Os partidos mais à esquerda defendem que as mudanças previstas para o IRC vão favorecer as grandes empresas. Qual é a sua leitura?
Não há nenhum motivo económico para, por si só, cobrar mais impostos às empresas que têm mais lucros. Quem tem mais lucros não quer dizer que tenha maior taxa de rentabilidade do capital. E é esta progressividade do IRC que, por ser falsa e enganadora, acaba por prejudicar as grandes empresas, que são as mais produtivas, são as que exportam mais e melhor, e também são as que pagam melhores salários, apresentando aos seus colaboradores melhores perspetivas de progressão na carreira. E ao seguirmos esta lógica só estamos a penalizar o desenvolvimento do país, impossibilitando que uma pequena empresa ambicione ser média e que uma média empresa ambicione chegar a um estatuto de grande empresa.
É defensor de uma política fiscal simples. Mas, anualmente, o que cada novo Orçamento apresenta em matéria de impostos não é um incentivo a uma lógica de uma cada vez maior imprevisibilidade?
O que acrescenta imprevisibilidade é estarmos sempre a mudar as leis. E as nossas regras fiscais mudam demasiadas vezes. A complexidade do sistema é outra vertente e que acaba por favorecer o trabalho dos contabilistas certificados e dos fiscalistas. O emaranhado é de tal maneira difícil que só pessoas especializadas conseguem descodificar as dúvidas que surgem. Digo-o com ironia, que isto quase parece um complô promovido pelas profissões de contabilista e fiscalista, no sentido de tornar as leis fiscais inacessíveis à restante população. Confesso que até beneficio com isso, visto que a minha mulher, ao ser contabilista e fiscalista, acaba por me ajudar sempre que tenho de escrever um artigo que verse sobre estas matérias. Em suma, o sistema fiscal que temos é um entrave à economia e ao país. Em Portugal, uma empresa para ter lucros tem de apostar na otimização fiscal, precisando de gastar recursos não produtivos para conseguir maximizar os seus lucros. Isto é um desperdício. Não é apenas um problema português. É europeu, em grande medida.
Fala-se demasiado da componente fiscal, mas o investimento continua a ser colocado à margem. Compreende-se que esta seja uma das variáveis mais sacrificadas nos últimos anos?
Idealmente não seria assim. Mas compreendo essa necessidade, nomeadamente por altura dos primeiros anos da governação socialista. Era necessário acalmar e pacificar a sociedade portuguesa, revertendo alguns aumentos de impostos, repor salários na função pública, etc. Ao fazer-se essas escolhas a variável investimento foi sacrificada. Durante alguns anos isso aguenta-se. Só que esse corte prolongou-se por oito anos. E quando começava a pesar seriamente, apareceu este maná que dá pelo nome de Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), e que irá compensar o corte feito no investimento nos últimos anos. Havendo fundos, haverá muito investimento público nos próximos anos. Veremos se é suficiente. Mas tal dependerá do grau de execução do PRR.
A narrativa das contas certas veio para ficar, e é transversal aos partidos da esquerda e da direita. Nos últimos meses o governo atualizou os salários de várias profissões e logo surgiram outras a reclamar igual tratamento. Será possível acomodar esta lógica no aumento da despesa ou está aberta a caixa de Pandora?
Penso que não valorizamos como deve ser a forma como a economia tem estado a funcionar bem nos últimos anos, essencialmente desde 2013/2014. Temos convergido razovelmente com a Europa, as receitas fiscais aumentam bastante (também fruto do disparar da inflação) e as despesas diminuem, porque as taxas de desemprego se mantêm consistentemente baixas – e isto apesar do choque energético e da crise dos cereais na sequência da Guerra da Ucrânia. Em resumo, há espaço para acomodar algum aumento de despesa e alguma redução de impostos. Mas o verdadeiro teste só acontecerá quando fizermos as contas de 2025. Os ex-ministros Mário Centeno, Fernando Medina e João Leão apresentavam sempre melhores contas do que o que se previa e isso deve-se ao facto de recorrerem a várias almofadas e margens orçamentais. É isto que me leva a crer que o governo, mesmo apesar de terem sido satisfeitas as reivindicações de várias profissões, conseguirá chegar ao fim do ano sem défice.
Mário Centeno, o atual governador do Banco de Portugal, alertou também para o risco de o país recuar para uma situação de défice orçamental, preocupado com os indicadores da despesa pública estarem a níveis de 1992. Justifica-se esta advertência?
Todos nos perguntamos de onde vem tanto dinheiro. Bem sei que a economia está a crescer e as receitas fiscais também deverão ir em trajetória ascendente, mas isso não explica tudo. Tivemos uma redução do IRC razoavelmente significativa, também no IRS, o fim de portagem nas ex-SCUT e está a ser negociada a revisão da carreira dos professores. E não nos podemos esquecer que precisamos de investir nas Forças Armadas.
O cenário macroeconómico está fortemente marcado pela incerteza: a regionalização do conflito no Médio Oriente, o eventual impacto no petróleo, nos juros, na inflação e no consumo. E não podemos esquecer que a “locomotiva” germânica dá sinais de quebra. O que antevê?
Enquanto país já passámos por muito: foi a crise financeira, a crise das dívidas soberanas e até o advento da inteligência artificial não está isento de incerteza. Temos de viver com isso. Mas também não podemos ficar paralisados. Dois pontos: a Europa está a perder importância e dinamismo no mundo. O bloco europeu tem de ser repensado e o relatório de Mário Draghi vai nesse sentido. A outra vertente é Portugal dentro da Europa. O facto de sermos dos países mais pobres, ao convergir com outras nações do Velho Continente, já nos confere algum dinamismo e, em consequência, algum crescimento. O próximo objetivo realista será que nos aproximemos da média de crescimento do espaço económico em que nos inserimos.