Entrevista
Entrevista a Luís Aguiar-Conraria
10 Novembro 2024
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«O sistema fiscal que temos é um entrave à economia e ao país»


Melhor regulação, fiscalidade mais simples, justiça mais célere e aposta no capital humano para fazer crescer as empresas. Estes são os pilares defendidos por Luís Aguiar-Conraria para um país mais desenvolvido e competitivo. Sobre a «fuga de cérebros», o presidente da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho (EEG-UM) afirma que não são as escolas que estão a falhar na sua missão, Portugal é que não está a proporcionar aos seus jovens as oportunidades que eles merecem.


Contabilista – A proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2025 é entregue pelo governo na Assembleia da República, precisamente no dia em que falamos. O IRC e o IRS Jovem têm dominado o debate. O que lhe parece o foco excessivo nestas duas medidas, deixando à margem uma apreciação global do documento?

Luís Aguiar-Conraria – Numa fase inicial, o governo encaminhou para a Assembleia da República, sob a forma de proposta de lei, a legislação relativa ao IRS Jovem e à descida do IRC, que se converteu na base da negociação do executivo com o Partido Socialista (PS) com vista à viabilização do OE 2025. Estas temáticas tornaram-se o foco central  do debate, convertendo-se nas “linhas vermelhas” do principal partido da oposição. E, por isso, dá-se este paradoxo de já estarmos fartos da discussão do Orçamento, quando este ainda nem sequer foi apresentado. Na minha opinião, as leis fiscais não deviam ser discutidas no âmbito do Orçamento, visto serem uma matéria mais estrutural, mais profunda, relacionando-se com a competitividade do país para a próxima década, ao contrário do Orçamento que é um mero instrumento de gestão com uma validade anual.

O debate e a negociação têm sido muito impregnados pela ideologia em detrimento do interesse nacional?

É taticismo político. No essencial sobre estas medidas, PS e PSD até convergem. O que vejo é diferenças de estilos na concretização das medidas.  Vamos por partes: no IRS Jovem são ambos a favor da importância que é preciso dar a este instrumento. No IRC, é mais aquilo que os separa, mas ambas as forças partidárias concordam que é preciso aliviar impostos nas empresas. O PS tem uma visão mais dirigista das empresas, pretendendo que a redução fiscal se reflita nomeadamente em termos salariais. Mas é preciso que se diga o seguinte: o governo também ousou mexer num aspeto muito original do nosso sistema fiscal, introduzido em grande medida por governos socialistas anteriores, que é a progressividade do IRC. À medida que os lucros das empresas aumentam começam a entrar derramas estaduais. Esta progressividade deixa este imposto quase à imagem do IRS.

Os partidos mais à esquerda defendem que as mudanças previstas para o IRC vão favorecer as grandes empresas. Qual é a sua leitura?

Não há nenhum motivo económico para, por si só, cobrar mais impostos às empresas que têm mais lucros. Quem tem mais lucros não quer dizer que tenha maior taxa de rentabilidade do capital. E é esta progressividade do IRC que, por ser falsa e enganadora, acaba por prejudicar as grandes empresas, que são as mais produtivas, são as que exportam mais e melhor, e também são as que pagam melhores salários, apresentando aos seus colaboradores melhores perspetivas de progressão na carreira. E ao seguirmos esta lógica só estamos a penalizar o desenvolvimento do país, impossibilitando que uma pequena empresa ambicione ser média e que uma média empresa ambicione chegar a um estatuto de grande empresa.

É defensor de uma política fiscal simples. Mas, anualmente, o que cada novo Orçamento apresenta em matéria de impostos não é um incentivo a uma lógica de uma cada vez maior imprevisibilidade?

O que acrescenta imprevisibilidade é estarmos sempre a mudar as leis. E as nossas regras fiscais mudam demasiadas vezes. A complexidade do sistema é outra vertente e que acaba por favorecer o trabalho dos contabilistas certificados e dos fiscalistas. O emaranhado é de tal maneira difícil que só pessoas especializadas conseguem descodificar as dúvidas que surgem. Digo-o com ironia, que isto quase parece um complô promovido pelas profissões de contabilista e fiscalista, no sentido de tornar as leis fiscais inacessíveis à restante população. Confesso que até beneficio com isso, visto que a minha mulher, ao ser contabilista e fiscalista, acaba por me ajudar sempre que tenho de escrever um artigo que verse sobre estas matérias. Em suma, o sistema fiscal que temos é um entrave à economia e ao país. Em Portugal, uma empresa para ter lucros tem de apostar na otimização fiscal, precisando de gastar recursos não produtivos para conseguir maximizar os seus lucros. Isto é um desperdício. Não é apenas um problema português. É europeu, em grande medida.

Fala-se demasiado da componente fiscal, mas o investimento continua a ser colocado à margem. Compreende-se que esta seja uma das variáveis mais sacrificadas nos últimos anos?

Idealmente não seria assim. Mas compreendo essa necessidade, nomeadamente por altura dos primeiros anos da governação socialista. Era necessário acalmar e pacificar a sociedade portuguesa, revertendo alguns aumentos de impostos, repor salários na função pública, etc. Ao fazer-se essas escolhas a variável investimento foi sacrificada. Durante alguns anos isso aguenta-se. Só que esse corte prolongou-se por oito anos. E quando começava a pesar seriamente, apareceu este maná que dá pelo nome de Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), e que irá compensar o corte feito no investimento nos últimos anos. Havendo fundos, haverá muito investimento público nos próximos anos. Veremos se é suficiente. Mas tal dependerá do grau de execução do PRR.

A narrativa das contas certas veio para ficar, e é transversal aos partidos da esquerda e da direita. Nos últimos meses o governo atualizou os salários de várias profissões e logo surgiram outras a reclamar igual tratamento. Será possível acomodar esta lógica no aumento da despesa ou está aberta a caixa de Pandora?

Penso que não valorizamos como deve ser a forma como a economia tem estado a funcionar bem nos últimos anos, essencialmente desde 2013/2014. Temos convergido razovelmente com a Europa, as receitas fiscais aumentam bastante (também fruto do disparar da inflação) e as despesas diminuem, porque as taxas de desemprego se mantêm consistentemente baixas – e isto apesar do choque energético e da crise dos cereais na sequência da Guerra da Ucrânia. Em resumo, há espaço para acomodar algum aumento de despesa e alguma redução de impostos. Mas o verdadeiro teste só acontecerá quando fizermos as contas de 2025. Os ex-ministros Mário Centeno, Fernando Medina e João Leão apresentavam sempre melhores contas do que o que se previa e isso deve-se ao facto de recorrerem a várias almofadas e margens orçamentais. É isto que me leva a crer que o governo, mesmo apesar de terem sido satisfeitas as reivindicações de várias profissões, conseguirá chegar ao fim do ano sem défice.

Mário Centeno, o atual governador do Banco de Portugal, alertou também para o risco de o país recuar para uma situação de défice orçamental, preocupado com os indicadores da despesa pública estarem a níveis de 1992. Justifica-se esta advertência?

Todos nos perguntamos de onde vem tanto dinheiro. Bem sei que a economia está a crescer e as receitas fiscais também deverão ir em trajetória ascendente, mas isso não explica tudo. Tivemos uma redução do IRC razoavelmente significativa, também no IRS, o fim de portagem nas ex-SCUT e está a ser negociada a revisão da carreira dos professores. E não nos podemos esquecer que precisamos de investir nas Forças Armadas.

O cenário macroeconómico está fortemente marcado pela incerteza: a regionalização do conflito no Médio Oriente, o eventual impacto no petróleo, nos juros, na inflação e no consumo. E não podemos esquecer que a “locomotiva” germânica dá sinais de quebra. O que antevê?

Enquanto país já passámos por muito: foi a crise financeira, a crise das dívidas soberanas e até o advento da inteligência artificial não está isento de incerteza. Temos de viver com isso. Mas também não podemos ficar paralisados. Dois pontos: a Europa está a perder importância e dinamismo no mundo. O bloco europeu tem de ser repensado e o relatório de Mário Draghi vai nesse sentido. A outra vertente é Portugal dentro da Europa. O facto de sermos dos países mais pobres, ao convergir com outras nações do Velho Continente, já nos confere algum dinamismo e, em consequência, algum crescimento. O próximo objetivo realista será que nos aproximemos da média de crescimento do espaço económico em que nos inserimos.

Numa entrevista que concedeu recentemente identificou os três pilares para um país mais competitivo: melhor regulação, fiscalidade mais simples e justiça mais célere. É esta a chave para um país melhor?

Permita-me acrescentar mais um pilar: o capital humano.  Mas vamos por partes: em primeiro lugar, não faz sentido dedicarmos tantos recursos não produtivos à questão da legislação fiscal. Sobre a questão da regulação, em vários setores fundamentais, Portugal funciona com oligopólios, ou seja, empresas que têm poder de mercado. Gosto que haja grandes empresas, até pela competitividade que proporcionam, mas incomoda-me quando são protegidas legalmente. Finalmente, quanto à justiça, não tenho uma quantificação exata dos custos que uma justiça lenta causa ao país. A justiça deve ser mais célere e também mais previsível. Temos assistido a que em situações ou casos similares, dois juízes decidem de forma radicalmente diferente. Isso é, de certa forma, normal se a justiça for célere e se os recursos forem interpostos e decididos com rapidez. Só que a criação de jurisprudência que uniformize os resultados e garanta certezas jurídicas é muita demorada.

Assume-se, sem rodeios e publicamente, como um «liberal de esquerda». Deve haver mais espaço à iniciativa privada e menos presença do Estado?

Ainda há muito paternalismo do Estado – com os apoios a serem dados de forma pouco eficiente –   e isso nota-se em tudo. E custa-me ouvir um primeiro-ministro de um governo da AD a afirmar, várias vezes, que este governo não é liberal. Parece que se esquece que vivemos numa democracia liberal. Sou liberal porque acredito que, salvo situações muito particulares, os mercados são a melhor forma de organizar a atividade económica e levam a soluções mais eficientes, relativamente ao Estado. Mas também sou de esquerda porque não acredito que essa solução de mercado conduza a resultados equitativos. Por isso, o caminho passa, sobretudo, por conjugar um sistema fiscal o menos intrusivo possível, mas que garanta uma distribuição justa de rendimento e de riqueza. O IRS que temos neste momento é tão progressivo que nem de esquerda é, pois impede alguém de subir na vida pelo seu trabalho. Quem for oriundo de famílias pobres só conseguirá passar da classe baixa para uma classe média/alta através do trabalho. Só que este imposto é de tal forma progressivo que quem comece a ganhar cerca de dois mil euros paga impostos que nunca mais acaba. Essas pessoas são penalizadas, castigando a mobilidade social. O atual IRS penaliza a mobilidade social.

Já falámos no início desta conversa de contas certas. A administração pública portuguesa é acusada de ser ineficiente e pouco qualificada, mas também está longe de ser um exemplo de boas e transparentes contas. O contabilista público, previsto na lei, mas que carece de regulamentação, é uma necessidade imperiosa?

Identifico dois problemas que acabam por chocar. Em primeiro lugar, há estudos que indicam que nós, portugueses, não confiamos no próximo. E partimos sempre deste pressuposto relativamente a quem está a fazer um ajuste direto fá-lo para beneficiar alguém ou para práticas de pequena corrupção. Depois, queixamo-nos da baixa execução dos fundos porque não conseguimos fazer as coisas em tempo útil. O outro problema que identifico é o sistema burocrático muito rígido, que leva a que haja imaginação e engenho para criar subterfúgios. Em resumo, precisamos de encontrar um ponto de equilíbrio mais razoável. Partilho o seguinte caso: sou presidente da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho e, por vezes, surge a necessidade de adquirir um computador para um investigador. A escola tem disponibilidade financeira, mas a burocracia e os procedimentos associados fazem com que se esteja à espera cerca de três meses. É nesta perspetiva que entendo que, ao nível da contratação pública, a figura do contabilista público é essencial para que estes profissionais assumam a responsabilidade e garantam a lisura procedimental e que tudo está a ser cumprido de acordo com a lei e da forma mais célere possível. Eles podem ser a chave para desbloquear este problema. Também aqui, à semelhança do sistema fiscal, é preciso simplificar.

Não esconde o seu ceticismo quanto à concretização de grandes projetos públicos. O novo aeroporto de Lisboa, o TGV e a ponte sobre o Tejo carecem de uma rigorosa análise custo-benefício?

O país não pode viver sem aeroportos, sem comboios e sem pontes. Ou seja, concordo com esses investimentos, mas subordinados a uma rigorosa análise custo-benefício. É preciso ficar demonstrado que valem a pena. Andamos a discutir o novo aeroporto praticamente desde que nasci, mas já repararam nos erros que evitámos por ainda não termos tomado uma decisão? Porventura o aeroporto já estaria em funcionamento na Ota, quando já se demonstrou que esta é das piores localizações disponíveis. Este conservadorismo até pode ter valido a pena. Porquê? Alcochete é a melhor escolha, vamos ter uma infraestrutura mais moderna e a Portela conseguiu expandir-se até níveis que não julgávamos possíveis. Em resumo, sobre o novo aeroporto o Estado atuou bem e vingou de forma consensual a solução tecnicamente mais razoável.

De que forma é que as universidades e os respetivos currículos, no caso particular da instituição que dirige, se estão a adaptar à transformação em curso no mercado de trabalho, em especial fruto das novas tecnologias?

As pessoas com uma adaptação mais rápida às novas tecnologias são as mais jovens, enquanto os professores, por serem mais velhos, também são os mais alerta e conscientes dos problemas que as novas tecnologias podem causar. Um docente mais experiente consegue logo identificar que um trabalho foi feito com o contributo do Chat-GPT. Estas plataformas podem melhorar o trabalho dos alunos, mas também podem piorá-lo. E muito. Deparei-me, o ano passado, com trabalhos que eram patéticos. As universidades têm de, ativamente, incentivar os professores a adotarem estas tecnologias nas aulas e os docentes têm de esclarecer os alunos sobre os limites para estas tecnologias. Este vai ser um processo learning by doing, mas estou certo de que vamos ser mais produtivos. Nesta fase, o fundamental é não ter medo. E estou em crer que não serão necessárias diretivas do Ministério da Educação…

Que impacto poderá ter tecnologias como o Chat-GPT na forma de ensinar e aprender?

Em primeiro lugar, a apresentação oral será muito mais valorizada. A avaliação, por si mesma, obriga a diferenciar. Se estamos a pensar que vamos ser todos «excelentes», isso não existe. Na realidade, somos todos medianos. O importante será que os alunos saibam usar melhor estas ferramentas e como levar estes softwares para o rumo que desejamos. Estou certo de que quem fizer isto bem feito é que vai ter a melhor nota no trabalho.

Existe a coordenação necessária entre o tecido empresarial e os centros de saber no que à formação de capital humano diz respeito?

Em particular na área de economia e gestão, que é o domínio que melhor conheço, essa articulação já existe. Mas o caminho de encontro entre as universidades e as empresas tem de ser feito pelos dois lados. As instituições promovem programas de formação executiva, mas ainda em número insuficiente. No Minho, em particular na minha escola, temos um “braço armado” que chega às empresas e que se chama «UMinhoExec» – a escola de formação de executivos. Permite-nos atuar junto dos quadros médios e médios superiores de empresas que precisam de atualização de conhecimentos ou formação em alguma área. Em função disso, desenhamos um curso destinado às necessidades específicas das empresas. Mas é preciso escalar ainda mais a resposta e estar, permanentemente, atento às oportunidades e aos novos mercados.

Uma empresa que decida investir mais no seu capital humano e na formação deveria ser premiada com benefícios fiscais?

Penso que devia antes ter mais lucros. Como presidente de uma escola, quando sou confrontado com a “fuga de cérebros” do país, entendo que temos a responsabilidade de dar a melhor formação possível aos alunos, para que, se for o caso, eles possam triunfar e ser competitivos em qualquer emprego, na Europa ou no mundo. Se isso acontecer, significa que a escola está a formar bons recursos humanos. Como tal, na questão da “fuga de cérebros”, não são as escolas que estão a falhar na sua missão, o país é que não está a proporcionar aos seus jovens as oportunidades que eles merecem. E é preciso que se diga que isto para Portugal não é sustentável. Há 20/30 anos que o capital humano escapa todo para Lisboa e isso nunca foi problema. Agora que deixou de ir para a capital, e o êxodo é para o estrangeiro é que passou a ser problemático? Isso mostra como o centralismo não sai da cabeça das pessoas. Em síntese, a aposta no capital humano é a melhor forma de uma empresa crescer. Se a empresa investir bem nos seus recursos humanos, vai conseguir crescer e obter mais lucros. Se fizer isto, não é preciso qualquer incentivo fiscal para as empresas e também se desaconselha qualquer aumento de impostos para as empresas que apresentem lucros.

Entrevista Nuno Dias da Silva | Fotos Jorge Gonçalves

PERFIL

Luís Aguiar-Conraria preside, desde janeiro, à EEG-UM, onde já foi diretor do departamento de Economia e vice-presidente para a Investigação e Internacionalização. É professor catedrático e leciona sobretudo cadeiras de Macroeconomia e Métodos Quantitativos. Doutorado em Economia pela Cornell University (Estado de Nova Iorque), mestre em Economia pela Universidade do Porto e licenciado em Economia pela Universidade de Coimbra recebeu, em 2011, o Prémio Gulbenkian para a Internacionalização das Ciências Sociais. Em 2010 e 2013 recebeu o Prémio de Mérito na Investigação (EEG/UMinho). Presença assídua nos órgãos de comunicação social, para abordar temas relacionados com economia e finanças, é colunista do «Expresso», comentador na SIC-Notícias e colabora com a Rádio Observador.

Entrevista publicada na Revista Contabilista n.º 294, de outubro de 2024