Como é que uma pessoa vai para contabilista?
Paula Franco - Em primeiro lugar, deixe-me referir que, ao contrário do que muitas pessoas acham, ser contabilista é uma profissão fascinante.
Fascinante?
Claro. O facto de ser uma profissão complexa, que exige rigor, ética, pressão e muita análise documental, leva a que, erradamente, esteja associada a um certo cinzentismo. Nós escrevemos todos os dias a história das empresas. Já viu a importância de registar tudo o que reflete a posição financeira das empresas? Ao reunir os dados referentes às empresas estamos a transmitir um manancial de informação para a tomada de decisão. Ter a informação financeira é um poder.
Como é que nasce este seu «bichinho» pela contabilidade?
Foi desde jovem e não teve qualquer influência familiar. O meu curso é de Gestão, mas sempre me fascinou a área da contabilidade. Aliás, antigamente, no 10.º, 11.º e 12.º anos, já existiam várias disciplinas muito vocacionadas. Eu fui para a área de economia e no meu tempo tínhamos contabilidade pura.
E era boa aluna nessas disciplinas?
Nessas disciplinas era muito boa aluna, e também porque gostava. Foi esse o momento em que me deu o clique.
Nunca colocou outra opção?
Não. Nem sequer fiz testes psicotécnicos. Sabia exatamente aquilo que queria.
Termina o curso e decide abrir, por conta própria, um espaço de contabilidade…
Isso já foi mais tarde. Antes fui para a consultadoria, inclusive na própria Ordem, com especial enfoque na parte fiscal. A fiscalidade, à semelhança da contabilidade, também é uma paixão. Tomar as melhores decisões, escolher os melhores caminhos e as melhores opções no contorno das operações societárias é algo que faz a diferença. As melhores decisões vindas de um profissional bem qualificado fazem a diferença no crescimento e alavancagem das empresas. Mas, ao fim de um tempo senti, que não conseguia crescer mais sem escrever, diariamente, a história das empresas.
Trabalhar para outro é diferente de ser a própria a escolher o seu destino? Sentiu esse impulso?
De alguma forma, sim. Mas senti, acima de tudo, a necessidade de ir mais além no conhecimento, fazendo a diferença na tomada de decisão com a informação financeira produzida. Trabalhava em consultadoria, aconselhava outros contabilistas certificados, mas não tinha, como popularmente se diz, «as mãos na massa». E foi há 18 anos que avancei e abri o escritório de contabilidade, mantendo a consultadoria.
Mas não vemos CEO contabilistas. Porquê?
Vemos muito CEO contabilistas. O que acontece é que, nesse patamar, não se identificam enquanto tal. Um CEO contabilista controla, conhece e sabe tomar as decisões com base na informação financeira. Veja a importância que tem eu, enquanto profissional, gerir a própria Ordem que lidero. Por vezes, falo com outros bastonários e sinto que eles têm essa dificuldade precisamente por não serem contabilistas.
Mas não há um choque com o CFO?
Não. O CEO não exerce a função de contabilista certificado. Até porque nem pode, é incompatível. Tem a base da informação, tem o conhecimento, mas depois está na área da gestão. O que acontece é que o background que tem lhe permite tomar melhores decisões.
Neste seu percurso, mais tarde, acabou por concorrer à liderança da Ordem. Sentiu vontade de ir mais longe na sua profissão?
Os contabilistas certificados nunca foram muito reconhecidos. São considerados quase técnicos de segunda. E sempre achei que isto levou a que muitas empresas não tenham tido o desenvolvimento adequado. A valorização do profissional e do seu papel, precisamente na elaboração das demonstrações financeiras e em contribuir com mais informação para a tomada de decisões, é fundamental. Elevar os contabilistas certificados para um outro patamar foi a principal razão que esteve na base da minha candidatura a bastonária. A informação financeira é tudo para as empresas, e a sociedade tem de reconhecer este valor. O contabilista certificado é o profissional mais importante da área das ciências económicas.
Essa é uma ideia que tem dito, frequentemente…
Repare que todas as áreas das ciências económicas, sejam as certificações legais de contas feitas pelos ROC, a análise de risco pelos bancos, as seguradoras e a própria AT ao nível da receita, tudo se baseia numa informação que é elaborada, tratada e produzida pelo contabilista certificado. Por isso, se não existirem profissionais qualificados a produzirem esta informação, na base, toda a análise que se segue fica enviesada.
E nesse esforço de valorização, está a considerar o estatuto ou também o vencimento?
É tudo junto. Os vencimentos do contabilista certificado são completamente diferentes do que eram no passado. Subiram bastante, principalmente nos que estão inseridos numa empresa.
Há carência de contabilistas certificados no país?
Sim. Os escritórios de contabilidade têm uma dificuldade enorme em contratar. Nas áreas das ciências económicas temos muita procura e uma situação de pleno emprego.
A dificuldade de recrutar tem contribuído para elevar os vencimentos?
Sim. Um contabilista interno numa empresa é hoje muito valorizado. O que acontece é que as empresas que não conseguem ter profissionais nos seus quadros recorrem muito ao outsourcing.
Como é que reage a certas vozes que criticam que um contabilista trabalhe em diferentes empresas, nomeadamente com implicações em termos concorrenciais que isso pode ter?
É uma questão de gestão. O outsourcing na contabilidade é uma realidade porque temos um tecido empresarial composto por muitas micro e pequenas empresas, que não têm a capacidade de possuir um profissional permanentemente. Do ponto de vista concorrencial e de sigilo temos um código de ética que enquadra o exercício da profissão. O facto de acompanhar várias empresas não lhe retira a isenção e a separação total entre as empresas. Entre o empresário e o contabilista é preciso que exista uma confiança total entre as partes. Caso não exista, a relação dificilmente resultará.
É quase um confidente?
Sim, um confidente em tudo. O contabilista certificado sabe tudo da vida do seu empresário, e muitas vezes entra no campo das finanças pessoais e da própria vida pessoal. Toda a empresa tem de estar espelhada no trabalho destes profissionais.
Num mundo em que existe, cada vez mais, dúvida e desconfiança, o contabilista pode ser visto como um portador da verdade?
Sem dúvida. Trata-se de um profissional de interesse público e que prima pela isenção. Esta profissão é considerada de interesse público por estar a salvaguardar o interesse do país em termos gerais. É, também, de fé pública, pelo facto de o seu trabalho dar confiança a todos.
E porque é que existe uma Ordem dos Contabilistas Certificados?
Precisamente para ter um código de ética e um código deontológico que regulam uma profissão e, sobretudo, para trazer o cariz de interesse público ao profissional, que tem de ser isento, independente e defender o que está na lei. E é a ordem profissional que regula o exercício profissional e vai atender às queixas que surjam visando os profissionais.
Da perceção que tenho, considero que esta é uma das ordens mais dinâmicas, considerando todo o associativismo. É uma forma de demonstrar que os contabilistas fazem mais do que contas?
Contar a história das empresas é fascinante, mas obriga a muitos desafios. A fiscalidade está longe de ser linear, há muita legislação de suporte, a relação entre as empresas e a AT, etc. É neste contexto que a Ordem tem de promover um trabalho de apoio aos seus membros para garantir que o contabilista está sempre a tomar as melhores decisões. Para isso, é preciso estudar, reciclar conhecimento e frequentar a formação obrigatória que disponibilizamos. Todos os dias há mudanças que têm de ser aplicados de imediato.
Essas mudanças nas obrigações, ao nível do trabalho dos contabilistas, não deviam ser suavizadas?
Seria ótimo, não só ao nível dos contabilistas, mas também nas mudanças que afetam as empresas. Por exemplo, a falta de estabilidade fiscal e a morosidade no sistema judicial pesam negativamente na competitividade do país. É muito difícil explicar certas coisas a cidadãos estrangeiros que investem ou desejam investir em Portugal. Confrontados com a complexidade existente, há muitos que desistem logo à partida.
A Ordem tem feito pressão para mudar este estado de coisas junto das entidades que decidem?
Sim, isso tem de acontecer sempre que o interesse maior da organização que lideramos for o interesse do país. Quando é preciso, urge identificar o que está mal e apontar o que pode ser feito melhor. Se melhorarmos, estamos a melhorar o país. Isto para além do papel que temos tido na sociedade em interpretar e a levar informação, tanto para os contabilistas certificados como para a população de uma forma geral. Não tenho dúvidas em afirmar que a OCC, hoje em dia, é identificada como a entidade mais idónea para a interpretação das normas fiscais, isto para além de ser ouvida sempre que há alguma alteração/medida legislativa ou, por exemplo, quando é apresentado o Orçamento do Estado. É o trabalho de antecipação que privilegiamos e que nos confere a credibilidade na análise destas matérias. A primeira coisa que faço todos os dias é ler o «Diário da República». Ainda tenho esse «bichinho» de estar sempre atualizada e só as notícias da comunicação social não chegam.
Com a generalização da digitalização, os profissionais já estão rodeados de menos papel?
Há uma evolução enorme nesse campo. Muitos contabilistas já não trabalham com papel, e para isso muito terá contribuído o facto de, em 2020, no ano da pandemia, ter sido permitido a contabilidade exclusivamente em suporte digital. Costumo dizer à nova geração de contabilistas que entram na profissão numa altura ideal, em que as tarefas redutoras e repetitivas são feitas pelas máquinas, o que permite que nos foquemos na análise e coloquemos o nosso conhecimento ao serviço da sociedade.