Contabilista – A empresa que lidera desde setembro de 2021 soma já 63 anos de existência. De pequena unidade familiar de torrefação, que deu os primeiros passos com o contrabando, na zona raiana, converte-se numa das maiores empresas e marcas do país. A perpetuação do legado do fundador, o seu avô, falecido em 2023, e a busca por novos horizontes e objetivos são o equilíbrio que movem o seu trabalho diário?
Rui Miguel Nabeiro – Sim, é importante respeitar o legado e a tradição na forma como fazemos as coisas, sem que isso signifique alguma falta de ambição. Aliás, sempre ouvi o meu avô dizer que é bom termos ambição. E é partindo de uma visão agregadora de todos os que trabalham na empresa que lançamos o desafio e o objetivo de querer posicionar a Delta no top 10 das maiores marcas de café do mundo. É em torno deste propósito comum que cada um sabe o seu papel e o contributo rumo a este objetivo.
Trabalhou 20 anos com o seu avô, o fundador da empresa. Há ensinamentos seus a que ainda recorre no dia a dia?
Quero acreditar que isso acontece sempre. Não que seja precisa estar, permanentemente, a pensar «como é que o meu avô faria?», mas o essencial é que a forma como se trabalhou nestas duas décadas foi interiorizada. Somos pessoas diferentes, mas os valores e o propósito da empresa permaneceram de forma fiel. Isso é o mais importante. O meu avô era o dono e fundador e as suas decisões eram incontestadas. Atualmente, a Delta continua a ser uma empresa familiar, em que a minha irmã e o meu primo estão no board, sendo o meu pai o chairman da companhia.
Ao contrário do seu avô, tem de prestar contas à sua família que integra o board da Delta…
É importante fazer essa destrinça até porque temos hoje uma estrutura de governance completamente diferente da que existia no passado que era gerida por quem a fundou e que tinha toda a legitimidade para decidir como quisesse. Temos internamente um sistema de checks and balances que ajuda a que nos mantenhamos no caminho certo.
Os estudos publicados indicam que esta é das marcas que os portugueses mais reconhecem e apreciam. A mescla entre tradição e inovação são os ingredientes para serem, ao mesmo tempo, uma love brand nacional e uma marca de projeção internacional?
Há um legado por trás – que levou tempo a construir - que nos encaminhou até aqui, mas o fator proximidade tem sido muito importante. A autenticidade e a forma humana como fazemos as coisas reflete-se no modo como nos relacionamos, de forma estreita, com os colaboradores, os fornecedores e os clientes. No fundo, manter a chama viva da proximidade com os stakeholders, adicionando a cola que nos faz andar para a frente.
As origens na vila de Campo Maior foram determinantes para a formação deste ADN?
Sem dúvida. Aquando da fundação fazer nascer uma empresa no interior era um ponto de dificuldade e um desafio extra. Mas passados todos estes anos, considero que foi uma sorte termos nascido em Campo Maior, tornando que a proximidade seja um fator de diferenciação e uma vantagem competitiva. É uma terra pequena, onde todas as famílias se conhecem, e existe um espírito de comunidade e sentido de pertença à empresa que na maioria dos sítios não acontece. É esse orgulho que acaba por se manifestar em coisas tão simples como, por exemplo, o pin da Delta que trazemos na lapela. Para além disso, as acessibilidades mudaram muito e hoje o percurso entre Campo Maior e Lisboa é cumprido em cerca de hora e meia. Mas ainda sou do tempo, quando lá ia passar fins de semana com o meu pai, que a viagem levava cerca de quatro horas.
Tudo começa em Campo Maior, mas a expansão desde as origens não tem parado. Dos quatro mil trabalhadores que empregam, muitos estão na sede e na fábrica do Alto Alentejo. Qual o papel da responsabilidade social da empresa para a coesão territorial e a mitigação do fator interioridade?
É com orgulho e satisfação que digo que Campo Maior é um oásis no meio do Alentejo. Tem uma das maiores taxas de natalidade no nosso país, o que é um sinal associado a bem-estar e estabilidade. Admito que não estamos em Campo Maior pela responsabilidade social, mas porque há uma vantagem competitiva por ali estar. Por ser uma comunidade pequena, as pessoas estão comprometidas com a terra e com a empresa, o que é uma atitude difícil de ser replicada numa grande cidade. Exemplo disto é a associação de solidariedade social «Coração Delta», formada com o impulso dos colaboradores do grupo e que tem uma intervenção ativa na região. Um dos componentes desta associação é um ATL particularmente dirigido aos filhos dos colaboradores e que visa estimular o empreendedorismo e o empowerment. Para além disto, esta associação apoia os mais velhos e os hospitais da região e, como muitos estarão, certamente, recordados, no tempo do meu avô, serviu para arranjar dentes a muita gente que precisava.
«A minha visão é fazer o bem porque recebo o bem», dizia o seu avô, Rui Nabeiro…
O meu avô fundou a Delta porque queria que a sua família vivesse melhor e para tal teria de criar riqueza. Com este propósito, acabou por criar riqueza não só para a família, mas para toda uma vila e para muitas e muitas famílias. Uma empresa só existe para criar bem-estar às pessoas, seja do ponto de vista da satisfação económica, realização e crescimento pessoal. Não serve para mais nada.
Em 2007, a Delta Q ousou desafiar a Nespresso e hoje lidera, destacada, o negócio das cápsulas. Foi o ponto de viragem. «Ambição» é uma palavra que está muito presente nas suas intervenções e que considera chave para crescer e evoluir. Considera que quem demonstra uma atitude ambiciosa ainda é olhado de soslaio e com desconfiança no nosso país?
Tenho a sensação que sim. Um dos ensinamentos que o meu avô me transmitiu foi que «não tem mal nenhum ter ambição.» Não vamos conseguir conquistar nada e não sairemos do mesmo lugar se não tivermos ambição. Quem não projeta e quem não ambiciona, não alcança. O ser humano só funciona se tiver metas e objetivos. É fundamental ver mais à frente para poder caminhar nessa direção. E isso só se consegue com trabalho.
Tem reiterado que falta a criação de mais marcas fortes e de referência em Portugal, que se evidenciem pela diferenciação e pela criação de valor acrescentado. Essa devia ser uma prioridade em termos de estratégia empresarial?
Não tenho dúvidas sobre isso. Só criando valor é possível termos melhores empregos e melhores salários para as nossas pessoas. Se apenas quisermos ser industriais e aumentar o salário mínimo não conseguiremos passar para o nível seguinte, com melhores condições para todos. Aliás, quando me candidatei para o meu primeiro mandato, como presidente da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa, um dos pilares que defini como prioritário foi sensibilizar os empresários para a importância da criação de marcas. Infelizmente, não vejo muitas marcas portuguesas de relevância. Aqui ao lado, os nossos vizinhos espanhóis têm marcas incríveis e toda a sua estratégia está assente em marcas. Não sou contra a industrialização, até porque nós também somos industriais. O meu ponto é que a via da industrialização não chega. Temos de possuir centros de inteligência e estar na vanguarda daquilo que é a inovação, a criação de valor no todo e a criação de marcas. Recentemente, estava em Paris, com a minha mulher, e ao comprarmos uma jarra a vendedora perguntou-nos de onde éramos. Ao ouvir «Portugal», ela disse logo que a tal jarra tinha sido produzida no nosso pais. Certamente que o valor que ficou em Portugal daquele objeto é muito menor do que o valor que ficou para quem lá meteu a marca. Assim, estamos a desperdiçar muito valor. Foi um exemplo concreto que me causou arrepios. Lidero uma empresa que gere marcas muito boas e sempre soubemos que o valor da marca era essencial. O meu avô em nenhum momento andou a vender café torrado. Assim que começou o negócio teve o cuidado de associar o produto à marca Delta. Nunca podemos esquecer que a marca é um contrato de qualidade e de confiança entre a empresa e o consumidor. Os consumidores e todos nós compramos marcas. E o valor está nas marcas.
Existe uma forte ameaça e pressão sobre os preços do café devido à instabilidade nos mercados. O preço do café arábica atingiu o valor mais alto em quase 50 anos. O preço da matéria-prima já está a ter reflexo no preço a pagar pelo consumidor. É uma inevitabilidade que a bica, uma verdadeira instituição nacional, veja, mais tarde ou mais cedo, o seu preço escalar?
É inquestionável que o preço da bica tem subido nestes últimos dois anos. Atualmente é difícil conseguir encontrar um estabelecimento onde seja possível beber um café abaixo de um euro. É uma inevitabilidade que continue a subir. Esperemos que nunca atinja uma proporção que possa ser considerada um luxo acessível apenas a alguns. Nós, enquanto empresas, não estamos aqui para perder dinheiro. O preço das matérias-primas, como o café e o cacau, fruto de um conjunto de fatores enorme, tem sofrido uma pressão muito grande. Mas tal como sobe, também pode, a qualquer momento, aliviar. Faz parte e são os riscos associados a um negócio em que adquirimos matérias-primas e não as produzimos, como é o nosso caso.