Entrevista
Felipe Pathé Duarte: «Se Trump ganhar, a Ucrânia passará a ser um problema europeu»
28 Junho 2024
Felipe

Uma nova ordem mundial no horizonte, os desafios securitários que se colocam aos Estados, as campanhas de desinformação e as ameaças que pairam sobre o modo de vida ocidental. Alguns tópicos de conversa com Felipe Pathé Duarte. 

Professor da Nova School of Law e especialista em segurança internacional 


Contabilista – Em «A Era dos Extremos», um livro da autoria de um dos maiores historiadores contemporâneos, Eric Hobsbawm faz o balanço do século XX. A era dos riscos e das incertezas permanentes é uma forma apropriada para definir o período em que vivemos?

Felipe Pathé Duarte –
Sim. Só para contextualizar, Hobsbawm escreve sobre um século que é marcado por ideologias, que tiveram a sua génese no século XIX. Todo o século XX é marcado por esta dinâmica conflitual entre ideologias. Nesse sentido, o historiador descreve estas ideologias como sendo transformadoras do ponto de vista da dinâmica social e tendo estando na origem de conflito e de morte. Por sua vez, já no século XXI temos uma fase de suspensão, pós-moderna, em que os tais extremos deixaram de ser o motivo para combate político e conflito violento. Mas ao mesmo tempo emergem pequenos grupos não estatais que em nome de determinadas perspetivas ideológicas extremas recorrem à violência, como é o caso da jihad e de outras formas de terrorismo. O que aconteceu foi que nos desabituámos de haver circunstâncias políticas extremas e desencadeadoras de violência extrema em nome dessa dimensão ideológica. 

Mas tudo muda a 24 de fevereiro de 2022…
Putin invade a Ucrânia e, por assim dizer, rebenta esta bolha em que vivemos nos últimos 30 anos, aproximadamente desde o final da guerra fria. Ou seja, depois da guerra fria a leitura de Hobsbawm deixa de fazer sentido. Mas para explicar o que se passa, na atualidade, podemos repescar alguns modelos de análise do século XX. Aliás, como dizia, Mark Twain, «a História não se repete, mas rima». Estamos confrontados com o regresso de uma ação política, motivada por uma lógica violenta, mas sem um corpo ideológico totalmente definido, como aconteceu no século XX. Duas mundividências que estão a entrar em confronto, nomeadamente na forma como entendemos a nossa liberdade e a democracia. 

 

Estamos a assistir à reconfiguração acelerada de uma nova ordem mundial? 
Há essa pretensão. Por um lado, há quem desafie a ordem liberal que marcou o sistema internacional desde o final da II Guerra Mundial, assente no respeito pelas instituições, pela soberania e pelo direito internacional. E claro que a guerra não é necessariamente um instrumento diplomático. Os tempos atuais mostram um desafio a essa ordem institucional e a uma dinâmica existente desde 1945.
Perante uma cada vez menor proeminência do ocidente no mundo, particularmente dos Estados Unidos, existe a possibilidade de uma dimensão mais multilateral do sistema internacional, em que quem vai assumir o protagonismo serão os países do sul global, liderados pela China, onde também se inclui o próprio Brasil. E suma, o sistema internacional a que nos habituamos durante os últimos quase 80 anos está a ser desafiado.
O século passado foi marcado por dois grandes conflitos. A guerra na Ucrânia e no Médio Oriente, até à data circunscritas, no terreno, a nível regional, podem escalar fronteiras e globalizar-se?
Há esse risco. Apesar de estarem circunscritas a nível regional, o efeito global de ambas as guerras é óbvio. Mas olhemos conflito a conflito. O que se passa em Gaza já a está a escalar e pode perfeitamente assumir uma dimensão regional. Mas é preciso admitir que já há envolvimento do Líbano e do próprio Irão, não de uma forma direta, mas através das suas proxys. Veja-se o caso dos Houthis que com as suas ações dificultam a navegação de navios no estreito de Bab-el-Mandeb. Agora, se as posições se extremarem entre Israel e o Irão teremos uma escalada  complexa do conflito no Médio Oriente. No caso do leste europeu, assiste-se a uma cada vez maior ingerência do ocidente que compreende que em caso de derrota dos ucranianos a sua mundividência pode ficar ameaçada. Naturalmente, que isso poderá suscitar uma reação russa e começar a escalada. A guerra sabe-se sempre como começa, mas nunca se sabe como acaba.

O presidente francês foi um dos que alertou para a forte possibilidade de a guerra alastrar para dentro das fronteiras europeias. O reforço dos orçamentos de Defesa e o relançamento do debate sobre o regresso do serviço militar obrigatório são disso prenúncio?
A bolha pós-moderna europeia rebentou. Não há volta a dar.  E a segurança e a defesa passaram a ser tratadas, outra vez, como assuntos de high politics europeia. Em consequência disto a arquitetura de segurança europeia transformou-se, significativamente.  Veja que a Alemanha ultrapassou o tabu do armamento e é hoje uma potência militar. Da mesma forma que a França, depois do brexit, pretende assumir-se como a grande potência militar do «velho continente». A Suécia e a Finlândia entram na NATO. É preciso dizer sem rodeios: a guerra não entrou no sentido clássico no espaço europeu, mas está cá. Quer queiramos ou não estamos em guerra. Mas é uma guerra diferente, de natureza híbrida. E como tal há fórmulas de atuação indiretas que aparentemente não estão ligadas ao proponente dessas atuações. São exemplo disso as campanhas de desordem informacional permanente, que passam por campanhas de contrainformação e desinformação com o objetivo de polarizar e causar sectarismo, condicionando e até bloqueando o processo de decisão dos estados e políticos europeus e, nalguns casos, suscitando vazio de poder, o que favorece o promotor dessa ação. No fundo «dividir, para reinar». E a alteração da nossa predisposição cognitiva da forma como vemos a realidade gera e suscita ações de contestação e protesto ao poder legitimo, colocando em causa o contrato social.

 

«A guerra não entrou no sentido clássico no espaço europeu, mas está cá. Quer queiramos ou não estamos em guerra. Mas é uma guerra diferente, de natureza híbrida.» 

 

A NATO completou, em abril, 75 anos de existência. Apesar da longevidade, são vários os fatores de desestabilização. Subitamente, a guerra na Ucrânia deu novo alento e razão de ser a esta organização. O eventual convite à Ucrânia para adesão à NATO, previsto para julho, pode ser o decisivo teste à sua existência?

Não sei será decisivo. A razão de ser da NATO manteve-se, sempre, mesmo após Macron ter decretado a sua «morte cerebral». Só que a guerra da Ucrânia levou a que a NATO se repensasse e ganhasse cada vez mais importância. Tenho sérias dúvidas quanto à viabilidade da entrada da Ucrânia na NATO. Para começar, implica uma alteração estrutural da organização, nomeadamente em termos de fronteiras e o confronto direto com a Rússia. Penso que o objetivo efetivo de entrada da Ucrânia na NATO está mais dependente de uma progressiva falência militar da Rússia. Mas confesso que sou algo cético relativamente a esta possibilidade

As eventuais vitórias de Trump e Marine Le Pen, nas presidenciais de 2024 e 2027, nos Estados Unidos e em França, podem ter efeitos no refrear da expansão imperialista do presidente russo?
Não creio. Aliás, a concretizar-se, ambas as situações são favoráveis a Moscovo. Comecemos pela Europa. É sabido que o partido de Le Pen teve uma grande proximidade à Rússia, nomeadamente através de financiamentos. Putin joga com essas ligações e o tempo corre a seu favor. O que acontecer em França poderá ser o reflexo de uma viragem política na UE e a tendência de uma hard right eventualmente poder tomar o destino de certos estados europeus e mesmo as próprias instituições europeias, fazendo com que a Europa como sempre a vimos seja posta em causa. E pode acontecer que esses mesmos Estados forcem uma negociação de cessar-fogo favorável aos interesses de Moscovo, uma vez que o apoio à Ucrânia poderá ser posto em causa.
Veja-se o crescimento da AfD (Alternative für Deutschland), na Alemanha, e do Rassemblement National, em França. Os partidos populistas estão a aproveitar-se do descontentamento popular, resultado do desgaste do contrato social e de crises de diversa natureza. E quando os cidadãos europeus e a Europa se debatem com tantas dificuldades, o apoio da Europa à Ucrânia pode muito em breve deixar de ser bem aceite, como até aqui, pela população. Putin é conhecedor desta realidade e joga com isso, deturpando a realidade através das campanhas de desinformação e abrindo caminho a que os partidos que referi, e outros, cheguem ao poder.

 

«As dinâmicas urbanas têm de evitar, a todo o custo, uma lógica de guetização e o fechamento das comunidades migrantes.»

 

E como vê a situação no outro lado do Atlântico?
A possibilidade de Trump ganhar é muito grande. E se isso acontecer, a Ucrânia passa a ser um problema europeu. E será que a Europa tem capacidade para continuar a aguentar esta situação? Mais uma vez, isto é uma corrida contra o tempo. E repito: o tempo está favorável, até agora, a Putin.

As vagas migratórias que chegam à  Europa são um desafio em termos sociais, ao nível do acolhimento e integração, mas também em termos da segurança nacional dos estados. A articulação e a coordenação entre polícias e serviços de inteligência dos estados-membros deve estar ao nível mais alto de sempre?
Presumo que sim, apesar de desconhecer o nível de cooperação e articulação. Mas é preciso dizer o seguinte: académica e cientificamente, não se consegue estabelecer uma relação direta e causal, em termos empíricos, entre o aumento do fluxo migratório e o aumento da criminalidade, em particular da violenta. Não se consegue. É preciso recordar que em meados da década passada tivemos uma narrativa de securitização das migrações na sequência dos refugiados climáticos e da "primavera árabe". Os ataques de "lobos solitários", inspirados na jihad, cresceram em paralelo com o crescimento da extrema-direita. Mas nem aqui houve relação direta entre o extremismo violento e o fluxo migratório. Contudo, uma relação foi estabelecida: migrantes provenientes de países onde há extremismo violento têm mais probabilidades de provocar ações terroristas nos países que os acolhem. O que creio que estamos a falar é de perceção de insegurança que, só por si, é um fator de insegurança. Uma sociedade instável, com tendência a polarizar pode, inclusive, desestruturar-se. Os fluxos migratórios vieram alterar paisagens e dinâmicas sociais causando uma perceção de insegurança, com implicações também ao nível das dinâmicas do poder político. O brexit e o crescimento da extrema-direita são disso exemplo.

A dificuldade de integração das comunidades migrantes à realidade ocidental é um desafio que se observa por todas as grandes cidades europeias, inclusive em Lisboa. Admitiu que a Mouraria, na capital portuguesa, pode ser uma espécie de réplica do bairro de Molenbeek, em Bruxelas, esmagadoramente constituída por migrantes. Quais os seus receios?
As dinâmicas urbanas têm de evitar, a todo o custo, uma lógica de guetização e o fechamento das comunidades migrantes. Podemos perfeitamente aprender com os erros de outras cidades europeias, como a que identificou na sua pergunta. Concordo com a construção de uma mesquita, mas não na Mouraria, um local que é ocupado, permanentemente, por membros da comunidade muçulmana. 

 

«Académica e cientificamente, não se consegue estabelecer uma relação direta e causal, em termos empíricos, entre o aumento do fluxo migratório e o aumento da criminalidade, em particular da violenta.»


O terrorismo de matriz jihadista tem estado relativamente adormecido nos últimos tempos. Contudo, eventos de massa como os que se disputam em França e Alemanha este verão (caso dos Jogos Olímpicos e do Europeu de Futebol) são alvos cobiçados pelos terroristas para semear o terror. Atentados sofisticados e em massa, como Madrid (2004) e Londres (2005), são mais difíceis de acontecer?
A tendência é essa. Os ataques terroristas agora são menos sofisticados e causam menos danos.  Um ataque a grande escala exige tempo, preparação, logística e estrutura. Se forem protagonizados pelos chamados "lobos solitários" há maiores possibilidades de fugirem à monotorização e ao escrutínio das forças de segurança. Ou seja, desde há muito que as estruturas jihadistas optaram pela «liberalização» das suas ações, deixando de haver uma dependência direta de uma cadeia de comando e basta que quem se inspira e tenha afinidades na doutrina possa agir, em nome dela. Esta é a lógica do "lobo solitário", que nem sempre atua isoladamente, ao contrário do que o nome pode indicar. Apesar do que disse no início o nível de risco não diminui, em particular nos eventos desportivos de massas que mencionou, especialmente ao nível de ações individuais visando soft targets.

 

Entrevista Nuno Dias da Silva | Fotos Raquel Wise

PERFIL

Felipe Pathé Duarte é Investigador e professor na NOVA School of Law, onde coordena o Master’s Degree em Law and Security. É ainda subdiretor do Centro de Investigação & Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade (CEDIS), e fundador e coordenador do War & Law LAB. É também Professor no Instituto de Ciências Policiais e Segurança Interna. É também consultor na VisionWare, Sistemas de Informação, SA, para as áreas de geopolítica e análise de risco. E é analista residente de assuntos de política internacional na RTP.  Foi consultor da Agência das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) para o combate ao extremismo violento em Moçambique e do Conselho da Europa. É investigador da European Research Community on Radicalisation (ERCOR), e membro da EU Radicalization Awareness Network (RAN).

Esta entrevista faz parte da edição da Revista Contabilista 290, de junho de 2024, que pode aceder aqui