Ordem nos media
Fim do imposto sucessório incentivou donativos em dinheiro
23 Janeiro 2004
Situação vai contra o objectivo de combate à fraude e evasão fiscais
Os donativos em dinheiro passaram, a partir de 1 de Janeiro deste ano, a estar isentas de imposto e, ao contrário das transmissões em espécie, a sua comunicação aos serviços tributários deixou de ser obrigatória. Estas alterações decorrem da abolição do imposto sobre sucessões e doações (ISD), mas o Ministério das Finanças não deu qualquer explicação para esta alteração. O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais considerou-a ontem como uma «medida muito pontual no âmbito da reforma» realizada. Apesar disso, diversos especialistas foram apanhados de surpresa. Peritos das firmas de consultoria contactados apenas a entendem como uma forma de legalizar aquilo que o Estado já não controlava, mas não encontram justificação técnica para a inequidade ou para o que vai contra o objectivo do combate à fraude e evasão fiscais. Isso acontecerá ao «transformar-se» transmissões onerosas em gratuitas, isentas de imposto e sem qualquer controlo administrativo, tornando Portugal num dos poucos países que não tributa as transmissões gratuitas em dinheiro. O fiscalista Rogério Fernandes Ferreira contou, num encontro ontem realizado, que tem falado com pessoas e representantes de empresas a questionarem-se sobre o alcance dessa nova norma. Outro especialista que solicitou o anonimato chamou a atenção que se perfilam já intenções de aproveitar irregularmente essa disposição legal. Para Fernandes Ferreira, «a lei suscita dúvidas que merecem ser resolvidas e há necessidade de ser aclarada». Mas isso, como acrescenta, apenas pode ser através da modificação da lei. Caso não o seja, a lei permitirá, por exemplo, que grupos empresariais aproveitem a isenção - contra a opinião do Fisco - para aumentar custos nas empresas com lucros, ao «doar» quantias às empresas que já tenham prejuízos, não pagando imposto nenhuma delas. Um alçapão aberto Essa confusão em perspectiva deriva da opção deste Governo de abolir o ISD. A intenção oficial - como o Partido Popular a capitalizou - era a de reduzir a intervenção do Estado nos assuntos das famílias, designadamente em heranças. Com o seu fim, a tributação passou a ser substituída pela imposição em imposto de selo. Mas não no caso das doações em dinheiro. Até 31 de Dezembro passado, essas transmissões eram tributados em ISD e, tal como estava previsto no artigo 136º, ninguém poderia movimentar depósitos bancários, contas poupança, títulos e outros activos sem que fosse comunicada a transmissão aos serviços tributários e pago o respectivo imposto. Agora, o artigo 1º, ponto 5, do Código de Imposto de Selo fixa que «não são sujeitos a imposto de selo as transmissões gratuitas (...) de valores monetários, ainda que objecto de depósito em contas bancárias, incluindo o abono de família em dívida à morte do titular, os créditos provenientes de seguros de vida e as pensões e subsídios atribuídos (...) por sistemas da segurança social». Ora, essa discriminação abre a porta à isenção da totalidade dos donativos em dinheiro. Sobre a medida, fiscalistas têm diferentes opiniões. Paulo Oliveira, da BDO, desconhece «a razão por detrás do legislador», uma vez que vai mais longe das relações entre familiares, o que lhe parece excluir «qualquer motivo social». «Está aqui um benefício fiscal que, na sua opinião, talvez tenha sido motivado por dificuldades de identificação dos contribuintes», legalizando-se o que era ilegal. Essa é precisamente a opinião de Luís Magalhães, da KPMG: «O Estado rendeu-se ao pragmatismo». Pessoalmente, não concorda, uma vez que «este tipo de medida fragiliza o que são os pilares do sistema fiscal» ao prejudicar a equidade fiscal. Pedro Amorim, da PriceWaterhouseCoopers, concorda com estas críticas e vai mais longe: «É um caso único na União Europeia», que «não se percebe quando se visa combater a fraude e evasão fiscais». Já Silva Jorge, perito da Ernst & Young, concorda com a medida, ao simplificar a legislação e afastar mecanismos que eram inoperacionais. Não vê efeitos de maior, mas acrescenta, todavia, que o legislador se devia preocupar mais em dotar o Fisco de melhores meios de controlo e que importava acabar com o sigilo bancário.