A vaga sem precedentes de fundos europeus traz um risco maior de fraude, avisa a bastonária da Ordem dos Contabilistas. Paula Franco defende um papel maior dos contabilistas no controlo do dinheiro.
Entre o dinheiro do fundo de recuperação pós-pandemia e o do quadro regular de fundos europeus, Portugal terá quase 58 mil milhões de euros em verbas comunitárias para executar ao longo da próxima década, um valor sem precedentes desde a adesão à União. Este enorme bolo é uma boa notícia, mas traz um risco associado: fraude. A bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados não tem grandes dúvidas: "Qualquer situação que venha de fundos comunitários e de utilização de dinheiros de outros é sempre suscetível de trazer fraude atrás".
No meio dos milhões europeus que vão circular nas empresas estará a figura do contabilista. Paula Franco defende que os contabilistas - os internos e os contratados fora pelas empresas - devem assumir um papel maior no controlo das verbas e não só na fase dos pagamentos. Este papel, diz, terá de vir com mais dinheiro para acompanhar o trabalho acrescido - dinheiro que os projectos financiados por fundos europeus prevêem.
Paula Franco fala também sobre os apoios durante a pandemia - nos quais os contabilistas tiveram um papel fulcral de asistência às empresas mais pequenas -, apontando para o risco que o erário público enfrenta nas garantias prestadas à banca. A bastonária afirma que sobretudo no início dos apoios, os bancos substituíram créditos antigos por créditos garantidos pelo Estado.
Está preocupada com o potencial aumento da fraude dada a quantidade enorme de fundos europeus que vem aí? E está preocupada com quê concretamente?
Qualquer situação que venha de fundos comunitários e de utilização de dinheiros de outros é sempre suscetível de trazer fraude atrás. Basta haver a possibilidade de haver dinheiro que seja considerado fácil. Isso preocupa-nos porque é o dinheiro de todos nós - não deixa de ter a ver com os impostos europeus e também com os nossos impostos - e porque a sua utilização abusiva tem consequências naqueles que deixaram de beneficiar dele.
O que a preocupa concretamente? O risco é maior nas PME ou nas grandes empresas? É pior em que parte da cadeia do dinheiro?
O que temos como orientação e experiência é o que aconteceu no passado. O passado diz-nos que muitos empresários não souberam lidar com as vantagens que poderiam ter na utilização destes fundos comunitários para melhorar os seus negócios. As necessidades de tesouraria das empresas são muitas e muitas vezes acontece deixar de haver preocupação com o objectivo final.
Que tipo de experiências os associados da Ordem narram sobre esse passado?
Houve muitas auditorias que vieram a relatar, por exemplo, o incremento dos valores das despesas [atribuíveis ao projecto e a reembolsar através de fundos comunitários]. Apresentar orçamentos de valores mais altos e haver negócios paralelos nos custos e candidaturas. Isso foi algo que se veio a verificar em muitíssimos processos, em auditorias feitas. Onde há uma oportunidade de se poder faturar sem limites está sempre associada a possibilidade de acontecerem abusos.
Como é que se conseguem evitar esses abusos?
Temos de ser mais rigorosos na aplicação das regras. Tem de haver por parte dos empresários, em primeiro lugar, uma mudança de mentalidade. Depois, por parte do contabilista certificado, há dois papéis importantes na garantia de rigor da utilização destes benefícios. Não tanto na parte inicial da candidatura, porque aí é o próprio empresário que manifesta as suas opções, mas depois na parte da execução dos próprios incentivos. E aí o contabilista tem um papel importantíssimo: primeiro porque é um profissional que tem uma profissão de interesse público e tem de assegurar com todo o rigor que aquelas despesas se verificaram dentro das condições elegíveis e que não há abusos. Tudo isso se consegue detectar de alguma forma, há sempre indícios, e o contabilista tem de verificar. O contabilista tem depois um segundo papel nos pedidos de pagamento finais e no acompanhamento do objectivo final, de ir assegurando com o empresário que os objetivos estão a ser cumpridos.
Estamos a falar de contabilistas internos, quando a empresa os tem, ou externos, quando são contratados. É isto?
É.
No caso dos internos há a pressão óbvia do empregador - o contabilista é um funcionário da empresa. Se envolvermos o contabilista mais cedo, sem ser na fase dos reembolsos, estamos a reforçar o controlo sobre a figura do próprio contabilista - é isso?
Exatamente. Há duas figuras: o contabilista que está em ‘outsourcing’, que faz um serviço de contabilidade; e o contabilista trabalhador independente. Um e o outro deontologicamente têm a obrigação e o rigor de serem isentos perante essa pressão. Claro que na prática sabemos...mas acontece nas duas situações: mesmo o contabilista externo, em outsourcing, não deixa de ser pago.
Há um conflito de interesses à partida, como na auditoria.
Há um conflito de interesses. Agora, há uma questão que se tem verificado principalmente nos últimos anos: o contabilista hoje em dia com a responsabilização que tem, em que ele próprio pode ser responsabilizado, tem uma postura completamente diferente em ser conivente ou em estar a permitir determinadas operações.
Mas não era assim antes? É uma novidade?
Não, não é uma novidade. Sempre foi assim. Mas estamos a falar de situações diferentes: nos incentivos e apoios que existiam há vinte anos as exigências eram diferentes e nem sempre era exigida a assinatura do contabilista. Hoje em dia já é. Mas passámos por um período em que houve muito menos incentivos. Normalmente os contabilistas associados a esse processo já estão mais preparados para não serem coniventes e saberem qual é a sua responsabilidade. O problema que vamos ter daqui para o futuro é que, se vão haver muito mais incentivos, vão haver muito mais contabilistas envolvidos. Portanto os contabilistas têm de ter a noção - e esse é um papel que a Ordem tem de fazer - da co-responsabilidade com o empresário sobre aquilo que serão as candidaturas, as verificações das despesas e depois os pedidos de pagamento.
Nada contra os contabilistas, mas as pessoas são pessoas. Toda a fraude nestes últimos anos envolveu necessariamente contabilistas.
Nos primeiros anos não envolveu e foi onde houve os maiores problemas de fraude. Tiveram muito a ver com a formação [profissional], a duplicação de alunos na formação. As maiores fraudes foram no princípio, do Fundo Social Europeu, e nessa altura não tinham a intervenção de contabilistas. Tinham a ver com dossiês que se preparavam - eu fiz algumas auditorias a esses projectos - e que as pessoas faziam para que batesse tudo certinho. Mas podia haver um aluno que tinha três formações na mesma hora, com a entidade a ser paga por isso, durante meses a fio. Isso era difícil de detectar se fossem entidades diferentes. E os contabilistas nem estavam envolvidos no processo. Os processos mais recentes, já de grandes investimentos, aí sim tem sempre um contabilista associado. Mas muita da fraude que existe é fora da entidade. É nas candidaturas e nos preços acordados. E aí nem sempre o contabilista consegue ter a noção de que pode haver valores envolvidos por fora. Se conseguir detectar internamente tem a responsabilidade de os controlar.
Que papel teve o contabilista até aqui e o que defende que faça agora?
Na maior parte dos casos, tirando os contabilistas que se especializaram nos fundos e na candidatura a incentivos, o contabilista da empresa não estava muito envolvido no processo de candidatura, só no processo de pedido de pagamento e na assinatura que ele tinha de assumir perante a validação dos documentos. Se hoje trouxermos os contabilistas para estes processos do princípio ao fim, em que ele esteja envolvido na própria candidatura, o contabilista poderá ter uma noção completamente diferente daquilo que se está a verificar. Imagine: se o processo se passa todo ao lado do contabilista, e o economista ou outro profissional que está a tratar da candidatura diz "olhe isto foi aquilo a que nos candidatamos, isto foi o que foi feito - confirma que na contabilidade estão estes documentos?", o contabilista diz "confirmo", põe a sua senha e está tudo certinho. Porquê? Porque do ponto de vista formal do documento efetivamente está tudo cumprido. O que se quer do contabilista para o futuro, em relação a estes novos apoios, é que ele tenha uma intervenção diferente.
Mais de auditor.
Mais de auditor e de acompanhamento também do processo. Por isso é extremamente importante que os contabilistas sejam envolvidos e tenham o custo elegível também nestes processos, para que queiram estar dentro do processo. Não pode pedir a um contabilista que tenha este envolvimento no âmbito do seu serviço normal, porque ele vai ter um trabalho acrescido. Portanto temos de redimensionar as empresas dos contabilistas para que possam acompanhar estas realidades.
Seria um financiamento - é isso?
Não. Em todos os projectos há sempre um custo elegível para os custos da contabilidade e do acompanhamento dos projectos. O que queremos é que seja específico para o contabilista.
Seja o contabilista interno ou externo.
Eu gostaria que houvesse uma verba para o interno, também. Se o contabilista interno não estiver envolvido vão-lhe passar muitos dos processos ao lado e depois ele só vai validar a parte formal.
Nessa moldura que defende, imagine que um contabilista detecta algo que não deveria estar a acontecer. Coloca-a perante os eu empregador, que lhe diz "não, queremos fazer assim". O que é que ele faz aí?
Se o contabilista tiver de pagar do seu bolso…
… recusa-se a fazer?
Como é óbvio. É como fiscalmente: porque é que hoje em dia os contabilistas, pela responsabilidade que têm, são muito mais isentos - não é que não fossem no passado - e têm essa preocupação? Porque se forem responsabilizados são eles que têm de pagar o diferencial e as multas ao Estado.
Há casos frequentes de contabilistas que tiveram de responder com os seus proprios bens nestes últimos anos neste tipo de situações?
Há reversões - poucas, mas há.
Que trabalho a Ordem está a fazer sobre a existência destes riscos e das pressões que provavelmente pelo menos alguns contabilistas vão enfrentar?
Muita formação, diálogo e muita participação junto dos seus contabilistas. Temos duas preocupações. Sabemos que vamos ter muito mais contabilistas envolvidos e que por isso muitos não têm acompanhado [a área dos fundos], nem sabem fazer candidaturas. Queremos preparar os contabilistas para que consigam estar na linha da frente destes projetos. Estamos a formar um departamento na Ordem para acompanhar e tirar as dúvidas aos contabilistas na elaboração das candidaturas e no acompanhamento da execução. Uma das grandes dificuldades que se tem nas candidaturas é serem muito dispersas. Vêm de vários ministérios e é muito difícil aquilo que existe chegar aos empresários. Penso que será um objetivo do país que os apoios cheguem de forma mais transversal a todos e não só sempre aos mesmos grupos, que é o que tem acontecido até agora. Há gabinetes especializados que já estão a trabalhar com as empresas que aproveitam todos os benefícios e as outras não aproveitam nada, nomeadamente as micros.
Isso tem-se visto na questão dos apoios na pandemia, também.
Porque as empresas maiores têm estruturas diferentes. Se não for o contabilista a dar este apoio, estas empresas [pequenas] não vão conseguir aceder a estes apoios. É sempre um dos aspectos mais difíceis para o empresário: saber o que existe, o que é que precisa e a que é que se quer candidatar. Se a Ordem tiver essa noção, junto com os ministérios, e conseguir fazer chegar a informação aos contabilistas para que a façam chegar aos empresários, acreditamos que vai haver uma aplicação mais transversal de todos os incentivos.
Este reforço do papel dos contabilistas - tem falado sobre ele com as autoridades? A quem tem proposto? E que respostas tem?
Há claramente a noção de que tem de passar pelo contabilista. A chamada de atenção que temos feito é de que não basta dizer que tem de passar pelo contabilista, como têm sido estes apoios todos que sabemos que não teriam chegado às empresas se não fossem os contabilistas. Há que fazer mais. Há que pagar aos contabilistas. É o equilíbrio de não se esquecerem nas despesas elegíveis - a UE já prevê esses gastos - que essas verbas têm de estar tipificadas. Senão o empresário pode não querer pagar e o contabilista não vai ter interesse em fazer esse trabalho extra, rigoroso, de acompanhamento e de auditoria.
Indo agora à frente dos apoios durante a pandemia. Denunciou queixas de pressão da banca sobre os contabilistas, para que mexessem nas contas por forma a que as empresas pudessem concorrer a apoios e linhas de financiamento. Continuou a receber queixas de contabilistas?
Sabemos que continuam [as pressões], informalmente sabemos que continuam. Já não há aquela pressão desavergonhada que existia, que era uma pressão enorme. Mas, por exemplo, há pouco tempo para os novos incentivos do Apoiar [um programa de apoio à tesouraria das empresas mais afectadas no confinamento] foi mudada a regra, no sentido de as empresas poderem alterar os capitais próprios para se poderem candidatar. Quem tem capitais próprios negativos não se pode candidatar. Isto leva logo a uma pressão grande. Os empresários querem ter soluções para poderem concorrer…
… e vão dizer ao contabilista para mascarar.
Mas não têm muitas vezes condições porque a maior parte das condições é injectar dinheiro, o que nesta altura imagino que não seja fácil. E isso é que tem trazido também alguma pressão. Acho que de uma forma geral os contabilistas têm sabido equilibrar as coisas e arranjar soluções dentro da legalidade para isto.
Ligando isso às moratórias: há preocupação no sector da banca sobre as moratórias e uma delas é com manobras que os empresários possam fazer, de fechar a empresa com dívida e abrir uma nova ao lado. Vê esse risco como sendo grande?
A banca aponta esse risco para as pequenas e micro empresas. Eu diria que esse risco é muito maior nas grandes. Os grandes problemas da banca e de crédito malparado têm a ver com as grandes empresas e com aqueles a quem a banca permitiu que não apresentassem garantias pessoais. Um pequeno empresário não consegue ter um empréstimo sem ter uma garantia pessoal. Os empresários de pequena dimensão há muito que têm um risco tão elevado na banca que praticamente não conseguem aceder ao crédito, As moratórias são um problema porque quer os moratórias, quer os novos financiamentos muitos deles estão garantidos pelo Estado. O que vai acontecer é que não tendo garantias pessoais, se as empresas não vierem a cumprir, são os nossos impostos que pagam. Nem é a banca: é o Estado.
E vê o risco de haver diluição das dívidas antigas nas linhas cobertas pelo Estado?
Sim, viu-se isso muito no princípio. É proibido, não está no âmbito dos novos financiamentos com estas linhas de crédito, que não permitem que sejam para reestruturação de crédito. Mas na prática…
Transversalmente na banca?
Não quero fazer essa acusação porque depois tenho de a provar, mas sim (risos). Eu meto-me com a banca e eles vêm logo dizer-me.
Do lado dos empresários, então: grandes, empresas, médias… em tudo?
Tudo. Mas continuo a achar que há mais riscos nas grandes e médias do que nas pequenas. E porque normalmente não têm garantias pessoais. Por isso é que é fácil fechar [a empresa endividada] de um lado e abrir do outro. As pequenas não podem fazer isso porque se fecharem para não pagar vão com as dívidas atrás. Os únicos normalmente que ficam com as dívidas das empresas pequenas e pouco podem fazer são os fornecedores. O resto - a banca, o Estado - protege-se.
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