«Agora posso ir ao banco?” Deixada em tom descontraído, a pergunta feita por António Costa à presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ficou para a posteridade na apresentação do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) de Portugal, o primeiro a ter luz verde de Bruxelas e com o qual o Governo promete transformar o País pós-Covid-19. Mas, numa altura em que a pandemia ainda está por debelar e os seus efeitos na economia por medir, não é difícil imaginar que a mesma questão soe na cabeça dos portugueses que tanto têm ouvido falar da "bazuca” ou da "vitamina”: como podem eles ir buscar uma fatia – ou nem que sejam migalhas – do bolo comunitário de 16,6 mil milhões de euros, a maior parte a fundo perdido, que começam a ser transferidos já neste mês de julho?
O Governo assume a exigência da execução do plano num tão curto espaço de tempo – seis anos para pôr no terreno reformas e investimentos que permitam um crescimento sustentado e uma convergência económica com a Europa, numa década. O plano português, inspirado na estratégia de António Costa Silva, estende-se pelas três dimensões de apoio – resiliência, transição climática e transição digital – que depois se desdobram em 20 componentes, que vão do hidrogénio à cultura; da cibersegurança na Administração Pública às respostas sociais; da habitação à descarbonização da indústria. À volta delas, deverão ramificar-se dezenas de concursos, nos próximos meses, que vão beber à fonte dos fundos para a recuperação europeia um manancial de 800 mil milhões de euros em potência, resultante de um esforço inédito de solidariedade europeia.
Augusto Mateus, consultor e antigo ministro da Economia, confia que a lógica da "longa tradição de fundos estruturais europeus” será trazida para o PRR, mas que o plano será um "contributo adicional” àqueles, ao ser mais concentrado no tempo e nos objetivos. "Não é reconstruir uma casa que caiu. São investimentos para redinamizar a economia, transformar o que tem que ver com a capacidade de criar riqueza. Há uma preocupação justa de que os investimentos sejam orientados para darem resultados para as novas gerações, as que vão pagar estes empréstimos, e não para outras”, sustenta o economista à VISÃO.
Se a "vitamina” PRR surtir efeito, esperam-se para as pessoas efeitos na criação e manutenção de emprego e de salários, a melhoria da formação e das qualificações, além do acesso a melhores condições de habitação e de saúde e transportes. Para as empresas, muitas das intervenções (sobretudo as materiais) significam dinheiro a entrar em caixa, porque geram obra, mas vão muito além disso, trazendo ganhos de inovação e competitividade.
As primeiras candidaturas, que arrancaram na semana passada em torno da formação superior de jovens e profissionais no ativo e da sustentabilidade energética das casas, dão uma ideia da variedade de candidatos que podem chegar-se à frente, num programa fortemente marcado pela execução pública. No total, os programas Impulso Jovem Steam, Impulso Adultos e a segunda fase do Programa de Apoio a Edifícios Mais Sustentáveis englobam um bolo de 282 milhões de euros. Se os primeiros são dirigidos a instituições e a parcerias entre empresas e universidades, o segundo pode ser requerido por pessoas, a título individual, bastando para tal que possam fazer obras nas suas casas. Isso explica que, numa semana, tivesse havido mais de 6 mil candidaturas: em média, uma candidatura a cada dois minutos.
Quando começa a cheirar a fundos comunitários, é normalmente à porta dos contabilistas que as micro e as pequenas empresas vão bater, à procura de quem lhes analise e descodifique a legislação. Além da "iliteracia nestas áreas, os empresários têm muita falta de acesso à informação”, constata Sílvia Toscano Almeida. "Têm-nos questionado muito sobre os apoios à transição digital, à informatização, onde é que podem concorrer. Nem percebem muito bem que ainda não está praticamente nada disponível”, aponta a responsável pelo departamento de Incentivos da Ordem dos Contabilistas Certificados.
Embora o foco estrutural do PRR esteja mais nas empresas e na Administração Pública, e o dos apoios comunitários clássicos se concentre na modificação e modernização do setor produtivo, Sílvia Toscano Almeida não antecipa exigências muito diferentes entre a aplicação dos dois modelos. Já o mesmo não se pode dizer das consultoras que ajudam a desenhar projetos de financiamento comunitário, em que persistem dúvidas quanto aos procedimentos. Paulo Pereira, que lidera a algarvia Neomarca, criada em 1995, está convicto de que o processo vai trazer "uma alteração profunda face ao que foi o Portugal 2020”, o anterior quadro comunitário, "pelo que não é possível conhecer, ao dia de hoje, como é que uma pequena empresa vai poder candidatar-se a esses apoios”, refere.
Apesar dos dois avisos já lançados, o processo para aceder aos fundos do PRR está ainda numa fase embrionária. "A principal dúvida, neste momento, que os nossos clientes colocam é saber como se vai poder aceder a estes mecanismos de apoio”, refere Sérgio Oliveira à VISÃO. O partner e líder do ReStart Center for Business da Deloitte reconhece que "ainda subsiste alguma incerteza ao nível da implementação do PRR, prevalecendo muitas dúvidas sobre os mecanismos que serão adotados para se fazer chegar à economia os apoios que estarão disponíveis”.
De onde vêm as munições?
A meados de junho, a União Europeia (UE) foi aos mercados financeiros e emitiu 20 mil milhões de euros de dívida. Foi a primeira operação destinada a canalizar fundos para os planos de recuperação dos Estados-membros. Para responder à crise da Covid-19, os países da UE acordaram, de forma inédita, avançar para emissões conjuntas de dívida, de forma a disponibilizar fundos a custos mais baixos para a maior parte dos Estados-membros. No total, a Comissão Europeia, em nome da UE, pode emitir até 800 mil milhões de euros até 2026. Essa dívida será, depois, reembolsada com receitas obtidas pela UE com as taxas sobre as emissões de carbono e os impostos sobre os serviços digitais. Bruxelas poderá ainda introduzir novos impostos sobre as transações financeiras ou uma contribuição a ser paga pelo setor empresarial, de modo a obter recursos para fazer face ao serviço de dívida. Já o orçamento de longo prazo da UE continuará a ser financiado através de direitos aduaneiros, contribuições dos Estados-membros, baseadas no IVA e no rendimento nacional bruto. Bruxelas criou ainda uma contribuição para os resíduos de embalagens de plástico não recicladas. R.B.
Aumentar a probabilidade de sucesso numa candidatura destas passa, desde logo, por acertar bitolas. "Os projetos a serem apoiados terão de estar em linha com as dimensões e componentes do PRR, alinhados com os princípios do [instrumento de recuperação] Next Generation EU e dentro dos critérios de elegibilidade de cada aviso de abertura de concurso”, diz fonte oficial da AD&C – Agência para o Desenvolvimento e Coesão, uma das envolvidas na coordenação e monitorização do plano. Uma posição secundada por Victor Cardial. "O Estado não financia projetos pelos bonitos olhos do empresário, mas, sim, os que tenham valor acrescentado, aumentem a riqueza do País, criem postos de trabalho e gerem impostos”, afirma à VISÃO. O presidente da Associação de Consultores de Investimento e Inovação de Portugal (ACONSULTIIP) refere que "existe uma ideia, que foi passada durante muitos anos, incluindo pelos próprios governos, que bastava fazer uma candidatura”. Mas no terreno, o processo não é assim tão fácil e linear: "A questão de preencher um formulário e já está, estilo jogar no Euromilhões, não é o mais correto para o País e para as empresas, e acaba-se por criar uma situação em que os empresários se veem com os seus projetos rejeitados e veem as suas expectativas a não serem cumpridas.”
A prioridade, pela leitura de Augusto Mateus, será dada "não apenas a mais crescimento” mas aos projetos que melhorem aspetos como a resiliência e a inclusão da sociedade. E, por isso, aconselha um bom acesso à informação, além de verdade, rigor e eficiência nos projetos, para se evitar cair na "bebedeira” dos fundos. "O propósito não é fazer chegar dinheiro a quem sofreu, não é distribuir dinheiro. A grande recomendação dadas às entidades é que façam bons projetos, que não se ponham a gastar dinheiro porque há fundos, mas a desenvolver o que faz sentido”, acrescenta. "Senão, acaba por ser dinheiro mal gasto.”
Já Victor Cardial recomenda que se encontre um consultor que seja parceiro, não apenas na candidatura e no recebimento do dinheiro mas para todo o projeto. Aconselha também a fazer-se uma análise completa, para que se tenha o projeto financiado e estruturado de forma adequada, e a ter-se sempre um plano B, em caso de algo correr pior do que o previsto.
À frente de uma equipa com mais de 150 pessoas no apoio estratégico e operacional na área dos fundos europeus e comunitários, Sérgio Oliveira nota que uma das principais dificuldades da gestão destes fundos "prende-se com as diferenças entre as taxas de compromisso e as de realização relativamente aos apoios atribuídos”. O responsável da Deloitte afirma que "é crucial que, no PRR, estejam alinhados estes dois indicadores” e salienta a importância de "mecanismos de controlo que detetem, de forma célere, a não realização atempada dos projetos, de modo que a taxa de compromisso associada a projetos não executados seja reduzida ao mínimo” (ver caixa: "Perguntas e respostas sobre o plano”).
Até ao final do ano, o Governo quer pôr a andar iniciativas e concursos em áreas como digitalização, descarbonização, inovação e reforço do músculo financeiro das empresas. Para as empresas, às quais o PRR reserva cerca de 5 mil milhões de euros de forma direta (perto de 30% do total), deverão avançar esforços de capitalização de 1 300 milhões de euros, a que se juntam 2 300 milhões de empréstimos, em caso de necessidade, além de iniciativas com potencial transformador no médio prazo, como os 930 milhões de euros para as Agendas Mobilizadoras, apoio ao investimento de projetos que ponham o conhecimento ao serviço da produção e da criação de empregos mais qualificados. Neste caso, as candidaturas, que devem começar na próxima semana, serão avaliadas e negociadas no último trimestre do ano, chegando os apoios no início de 2022.
Vitamina ou tábua de salvação?
A economia portuguesa tem apresentado dificuldades estruturais de crescimento. Como o PRR impulsionará o potencial do País?
Nos próximos cinco anos, Portugal poderá "ir ao banco” buscar 16,6 mil milhões de euros, vindos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Mas o seu impacto pode ser bem maior do que esse. A expectativa do Governo é a de que estes investimentos, caso sejam executados na sua totalidade, possam representar um impulso histórico para a economia nacional.
Nos últimos 20 anos, Portugal cresceu a um ritmo anual de 0,3% ao ano. O equivalente a ter estado duas décadas quase parado. Esse número é explicado essencialmente por duas recessões violentas, com a vinda da Troika, em 2011, e, agora, com a pandemia. Mesmo em expansão, o crescimento tem sido desapontador. A exceção são os três anos pré-Covid, alimentados pelo turismo. Tal como o foi no passado a entrada na União Europeia, o PRR é a nova esperança para um impulso económico e para a reforma estrutural, que ajude o País a sair do marasmo das últimas décadas.
"Prevemos que o PRR acrescente mais 22 mil milhões de euros à economia, ao longo destes cinco anos, até 2026. Assim, no final de 2025, o PIB potencial deverá situar-se 3,5% acima do nível que se teria verificado num cenário sem PPR”, afirmou João Leão, há uma semana.
Estes números aparecem nas versões mais recentes do PRR. Uma das críticas iniciais ao documento era que este não tinha informação suficiente para se fazer a referida análise. Ainda que estas estimativas tenham uma incerteza muito elevada, nas últimas versões já é possível perceber um pouco melhor o impacto de cada área de investimento, no longo prazo. Por exemplo: numa perspetiva a 10 e a 20 anos, sabemos que os maiores ganhos económicos virão dos gastos em "inovação e investimento”. É nessa categoria que estão a capitalização de empresas e os incentivos à sua digitalização. A "educação e emprego” e a "descarbonização” surgem a seguir, como as áreas de que virá a maior fatia do impulso.
Não é de admirar, uma vez que são das áreas que mais fundos irão receber. Se quisermos avaliar o impacto de cada euro de investimento, verificamos que esses setores também estão entre os que trazem maior retorno. Numa perspetiva a 20 anos, os investimentos mais compensadores são em alojamento estudantil, qualificações e escola digital, que devolvem 6,2 euros por cada euro investido. A aposta na capitalização e digitalização das empresas surge a seguir (5,9), tal como as infraestruturas de saúde (5,7). Os multiplicadores mais baixos estão relacionados com as florestas e a gestão hídrica e com a inclusão no mercado de trabalho, com pouco mais de 2 euros de impacto por cada euro de despesa.
Embora o plano esteja desenhado para tirar o País desta crise e dar um salto de modernização, alguns dos investimentos previstos pretendem colmatar falhas em áreas subfinanciadas nos últimos anos. Em média, cada euro do PRR gasto entre 2021 e 2026 deverá ter um impacto de 5,3 euros, ao fim de duas décadas.
Não só estas previsões de longo prazo são bastante incertas como assumem que Portugal será capaz de absorver todos estes fundos no calendário previsto, e que eles serão bem executados. Se assim for, Portugal pode beneficiar de um empurrão neste novo ciclo de crescimento. A alternativa é o PRR ser mais uma oportunidade perdida para o País. Nuno Aguiar.
O Governo espera ainda iniciar concursos nas áreas da saúde (digitalização e melhoria de serviços), habitação (construção de habitação social), respostas sociais (estruturas para acolhimento de idosos e creches, ensino à distância ou serviços ao domicílio), projetos de gestão hídrica em territórios de seca, linhas de mobilidade sustentável (metropolitanos de Lisboa e Porto), além de uma nova tranche de computadores para as escolas. À VISÃO, o ministro do Planeamento diz que espera que o financiamento do plano esteja, em larga maioria, contratualizado neste ano, com os beneficiários diretos e intermediários (instituições que depois canalizam os fundos para as empresas), e os concursos lançados até 2023.
Para lá do plano que começa neste mês a receber dinheiro (além dos 900 milhões de euros que já foram adiantados via Orçamento do Estado), ficam por aplicar 11,2 mil milhões de euros do Portugal 2020 e haverá ainda €33,6 mil milhões do orçamento de longo prazo da UE para usar na próxima década (ver infografia). Neste quadro falta ainda fechar as negociações do acordo de parceria com a Comissão Europeia. A AD&C prevê que isso esteja "concluído e implementado até ao final deste ano, altura em que serão lançados os primeiros concursos do Portugal 2030”.
Execução, o grande desafio
Dinheiro é, portanto, o que parece não faltar nos próximos anos, a um ritmo que exige a mesma coordenação para manter várias bolas no ar em simultâneo. Entre a aplicação das últimas verbas do Portugal 2020 e o arranque da Estratégia Portugal 2030, será necessário executar também o PRR, num prazo curto, com metas mais apertadas, a que se somam as exigências de vigilância e de boa aplicação dos fundos, para se evitar fraudes e financiamentos em dobro. E, em cima disto, há que vencer o desafio da execução que se ficou nos 57% no quadro financeiro anterior.
Mesmo com este número, o ministro do Planeamento, Nelson de Souza, defende que "é preciso contestar a ideia de que somos maus a executar” e afirma que "temos estado sempre no pódio”. Em entrevista à VISÃO, o governante argumenta que Portugal está "cinco pontos percentuais acima da média europeia, que é de cerca de 50%”, ao passo que grandes países beneficiários, como Espanha e Itália, estão dez pontos abaixo.
Se do lado do Estado será necessário um elevado grau de eficiência, no das empresas também há trabalho a fazer para que os fundos sejam absorvidos. Isso passa não só por apresentarem candidaturas, com potencial para a economia portuguesa, em linha com os objetivos dos programas mas também, sublinha Victor Cardial, por terem os capitais próprios necessários para os projetos, numa altura em que muitas delas continuam descapitalizadas. Além de fazer chegar o dinheiro depressa ao terreno, será necessário garantir que ele flui para projetos de valor e que não cai em sorvedouros não produtivos.
As projeções da Standard & Poor’s, por exemplo, mostram bem a diferença que pode existir entre uma elevada e uma baixa taxa de absorção dos fundos do PRR. Num cenário em que cerca 90% do valor do plano seja utilizado em projetos que tenham um efeito multiplicador na economia, o PIB português poderia ter um acréscimo de mais de 10% até 2026. Já caso o PRR se fique por uma utilização de 50% e em projetos sem grande valor acrescentado, a melhoria não irá além de 4,5 por cento.
António Costa – e quem diz António Costa diz o Estado, os empresários ou, no limite, o cidadão comum – até pode ter nos próximos meses o dinheiro no banco, à espera de ser levantado. O mais difícil vem a seguir: usá-lo bem e não falhar na pontaria – para que não precisemos de voltar a recorrer a outras "bazucas”.
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