Ordem nos media
«Tenho dúvidas que Bagão consiga criar uma política fiscal para o País»
8 Outubro 2004
Entrevista a Domingues de Azevedo, pelo Semanário Económico
O presidente da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (CTOC) defende que Bagão Félix é ministro com «sensibilidade fiscal», mas teme as dificuldades que tem quem gere um ministério tão complicado como o das Finanças. Atento à elaboração do Orçamento do Estado (OE) para 2005, lamenta a redução dos Benefícios Fiscais e deixa sugestões de alterações ao nível do regime simplificado de tributação, que considera «uma ratoeira» e da entrada em vigor do art.º 35º do Código das Sociedades Comerciais (CSC). Uma medida prevista para o OE 2005 é a co-responsabilização do TOC nas dívidas fiscais dos clientes se tiverem conhecimento de crimes fiscais e não os comuniquem. Que pensa disso? Acho estranho. No âmbito dos estatutos, a CTOC devia ser ouvida e não o foi. A menos que venha sob forma de autorização legislativa. Já há normas que obrigam os TOC que no âmbito da sua profissão tenham conhecimento de crimes públicos, a comunica-los ao Ministério Público. E nós temos enviado também à DGCI. Mas sem co-responsabilização pelas dívidas... Uma tal norma seria inconstitucional. O TOC não tem intervenção directa na opção de pagamento ou não por parte do sujeito passivo. E há outra questão de fundo: até que ponto a obrigatoriedade desta denúncia faz perigar a relação laboral? Porque o TOC pode ser profissional liberal ou trabalhador por conta de outrém. E as pessoas têm de comer todos os dias... Não arredamos os nossos profissionais desse combate, mas confunde-se evasão com falta de pagamento. Depois da liquidação, pode haver incapacidade financeira do devedor. Há situações em que os TOC devem actuar, mas a Administração tem meios coercivos para obrigar a pagar e muitas vezes essa acção é lenta ou não é accionada. Haver tantas empresas que não pagam IRC é responsabilidade do Fisco? Há quem queira cumprir mas não o possa fazer por causa da concorrência desleal daqueles que não são fiscalizados. Há uma grande incidência de fiscalização nos sujeitos passivos que melhor ou pior vão cumprindo as suas obrigações, e esquecem-se os que estão fora do sistema. Por exemplo? Na construção civil. Uma empresa que tenha uma pessoa na Segurança Social e duas ou três que não estejam, ganha uma capacidade de concorrência desleal de 23,75% em relação a quem cumpre. E muitas vezes no final não passa factura, o que acresce a sua competitividade. É com isso que a Administração Fiscal tem de começar a preocupar-se. No dia em que os cidadãos se sentirem vigiados, vê-se a evasão fiscal a reduzir a níveis comportáveis. Não tem sido esse o objectivo de sucessivos governos? É preciso haver vontade. E há pequenas coisas que têm um impacto extraordinário. Na órbita da construção civil, a Administração Fiscal devia passar pelas câmaras, ver quem levantou aos titulares pelas facturas. E há outros exemplos, como os advogados. Há dificuldade em chegar aos tribunais e saber quem patrocina as acções? Ou os médicos, que têm as vinhetas nas receitas que passam? È necessário é haver vontade. No dia em que fizerem isso, é lume que chega a estopa. Propaga-se. Tem considerado que o regime simplificado de tributação é uma «ratoeira». Devia ser alterado? É a vergonha do nosso regime fiscal. Porque é feito de forma intencional a confundir os TOC (que são quem toma as opções neste domínio, em função dos parâmetros dos sujeitos passivos) no sentido de os lançar para um regime que não corresponde à realidade das empresas. Se uma empresa cuja estrutura de custos é superior a 35% opta pelo regime da contabilidade organizada, o Estado não pode alimentar mecanismos para lhe criar a convicção que está num determinado regime, e vir depois enquadrá-la oficiosamente e sem aviso no regime de tributação simplificado. A forma como a lei está feita é uma ratoeira autêntica para os profissionais e para os sujeitos passivos. Pode explicar melhor? A Administração Fiscal entende que caso a empresa atinja um volume de negócios superior a 150 mil euros não tem direito de opção e, no ano a seguir, enquadra-a, sem qualquer aviso, no regime simplificado. O argumento é de que, como foi indicado um volume de negócios superior a 150 mil euros, a opção pela contabilidade organizada não produz efeito. Só que o sujeito passivo quando optou pela contabilidade, ficou com a expectativa de que isso era válido por três anos. Isto é má fé. O próprio regime simplificado tem de ser repensado. Às empresas de pequena dimensão é-lhes favorável, justifica-lhes custos de 35% quando às vezes nem teriam. Mas acaba por tributar valores que não são atingidos pelos sujeitos passivos e deixa fora de tributação valores que o são. Que solução sugere? Muito simples. Definir que determinados sectores de actividade, onde as margens de intermediação são maiores, não podem beneficiar do regime simplificado. E deviam também excluir-se as sociedades. E que se alterem as disposições de inscrição, para que não se frustrem expectativas. Os TOC não deviam identificar estes problemas antes de aconselhar os clientes? Claro que têm obrigação de ver estas artimanhas, mas a lei está armadilhada. A CTOC já suportou, através do seu seguro de responsabilidade civil, cerca de cinco milhões de euros de indemnizações pedidas a TOC por clientes que foram induzidos em erro, que pensavam que estavam num determinado regime e que caíam no simplificado, que não queriam. O próximo OE deverá contemplar reduções de Benefícios Fiscais. Concorda? Nunca entendi porque se incentivou os cidadãos a entregarem as suas poupanças ao sector privado e não ao Estado, no sentido de ele fazer delas uma boa gestão. O mecanismo dos PPR, PPH, PPE, surgiu logo inquinado. Deveria ser um incentivo do Estado para que os cidadãos poupassem, por exemplo com os descontos para a Segurança Social, ou constituindo na Direcção-Geral do Tesouro contas dessa natureza. Mas concorda com a redução? Não. Era o único meio que as pessoas tinham de reduzir um pouco sua carga fiscal. Retiram estes benefícios aos cidadãos mas, por exemplo, não mexem nas mais-valias e quem tem as grandes fortunas a ganhar rios de dinheiro. Há aqui alguma injustiça... Os empresários dizem-se defraudados com a não redução do IRC, como prometido pelo anterior Executivo. O IRC deve estar a par com o que se passa com o IRS. Defendo um sistema progressivo de tributação no sentido de as empresas que maior rentabilidade têm, também terem uma taxa de tributação maior. Não teria reflexos negativos na atracção de investimento externo? Há países como a Dinamarca, onde pagam 36% de IRC. Devemos começara a olhar para as empresas com outros olhos. A produtividade, as condições de trabalho... Bagão Félix tem defendido alterações ao sigilo bancário. Concorda? Plenamente. Sou apologista de que para efeitos fiscais nem deve haver. Naturalmente, responsabilizando quem usa essa informação. Não faz sentido manter o sigilo bancários porque é um meio de informação para chegar à verdade contributiva das empresas e cidadãos. Não há em Espanha, por exemplo. E os investimentos não fugiram. Isso é um chavão. Preocupa-o a entrada em vigor do art.º 35º do CSC? O Governo quer criar uma norma que as suas próprias empresas são as primeiras a não cumprir. O exemplo tem de vir de cima. Tenho ouvido ¿ e deixa-me preocupado ¿ que o Governo estaria a preparar uma medida de excepção para as empresas públicas. Acho de uma incongruência total, que vem tirar credibilidade à Lei. Quanto aos objectivos do art.º 35º, estou de acordo, mas é uma cláusula abrupta. Complicada de accionar. Deveria ser clarificada, e introduzir-se um mecanismo intermédio de avaliação, como o tribunal, uma casa de falências... um organismo que se pronunciasse sobre se há ou não uma solução para aquela empresa. Como está, a Lei trata da mesma forma um elefante e um mosquito. Não deveria então entrar em vigor a 1 de Janeiro de 2005? Tal como está mão. Não abarca a nossa realidade e é prejudicial. E pode de facto conduzir ao encerramento de muitas empresas. Que pensa do ministro das Finanças, Bagão Félix? Tenho dele a imagem de um homem competente. Do que conheço, faço uma leitura positiva. Acredita que é o ministro que criará uma efectiva política fiscal para o País? Não dependerá tanto do ministro das Finanças. Nós não temos uma política fiscal, temos uma fiscalidade para a política. O que é grave. Os políticos definem o que querem fazer e depois pressionam o sistema fiscal para obter as receitas necessárias. Uma política fiscal seria fazer uma gestão do sistema fiscal e depois usar os excedentes. Por isso, tudo depende de uma política global do Governo e de uma estratégia concertada de todos os governantes. Mas o Ministro das Finanças tem um papel importante. Bagão Félix é a pessoa indicada para avançar? Não sei, tenho as minhas dúvidas e não quero futurologia. O Dr. Bagão Félix está num ministério completamente diferente do da Solidariedade e Segurança Social. O ministério das Finanças tem riscos muito mais elevados. Que ele é uma pessoa com alguma sensibilidade nestas temáticas, é. E quanto ao Director-Geral dos Impostos, Paulo Macedo? Tem havido muita polémica com o seu vencimento, penso que temos vindo a cultivar um conceito muito perigoso no âmbito da coisa pública, de que pode fazer-se tudo de qualquer maneira, porque mesmo que se falhe ninguém pede responsabilidades. É tempo de mudar. E só assim se justifica esta polémica. Se Paulo Macedo era funcionário de uma entidade privada, cujo objectivo é o lucro e mantinha ao seu serviço, pagando-lhe aquilo que pagava, é porque pelas suas qualificações como gestor gerava lucros para a entidade patronal. Porque é que o trabalho de uma pessoa destas não há-de ser também lucrativo para o Estado? Se não for assim, de hoje para amanhã quem vamos ter à frente da coisa pública? Há que exigir que as pessoas justifiquem o que recebem, traçar metas e avaliar, criando-se mecanismos penalizadores. Paulo Macedo está então a cumprir? Não sei quais as metas que lhe foram colocadas. Devia haver transparências, e tornados públicos os seus objectivos. É alguém que conhece em profundidade as questões fiscais e tem muita sensibilidade para elas, o que já é bom. Revelou desde logo capacidade de gestão de recursos humanos, ao reenquadrar o ex-director-geral Nunes dos Reis. Tudo isso indicia que temos o homem certo no lugar certo, mas a Administração Fiscal é uma máquina muito complexa. Penso que o Director-Geral compreendeu essa complexidade e está no bom caminho. «A IGF pediu que lhes fornecêssemos também a informação fiscal que enviamos todos os meses aos sócios» A profissão de TOC tem sofrido alterações nos últimos anos? Deu um salto extraordinário, nos níveis de exigência, na preparação profissional, num esforço para que estejam suficientemente preparados para exercer a profissão. Pela primeira vez a CTOC definiu as áreas de conhecimento que entende como imprescindíveis para o exercício da profissão. E não houve nenhuma instituição de ensino que não tivesses de alterar os seus currículos, para que preenchessem os requisitos para ingresso na profissão. Pela primeira vez exigimos aos membros exames de ética e deontologia, uma estágio profissional e, a partir de 2005, vão haver exames de avaliação profissional para ingresso na CTOC. Quantos Técnicos estão actualmente inscritos? Estamos inscritos 75 570 membro. Destes apenas cerca de 35 mil exercem a profissão. Há um universo de 40 mil que mantém uma ligação à CTOC e também pagam as suas quotas ( oito euros por mês). São professores, directores financeiros, ROC, funcionários da administração pública, com especial destaque para a DGCI. Como explica isso? Fazemos reverter todo o conjunto de benefícios. Por exemplo, a informação mensal que lhe enviamos em CD, onde compilamos toda a legislação que tem conexão com a profissão, a doutrina, a jurisprudência dos tribunais, e a doutrina administrativa da DGCI. Consta-se que até terá recebido um pedido da DGCI para lhes fornecer essa informação em CD... É verdade. O ex-inspector geral das Finanças telefonou-me numa ocasião, dizendo que queria pedir um favor: estivera a avaliar o CD, concluira que estava impecavelmente estruturado e queria saber se não lhe podíamos enviar todos os meses alguns para os seus serviços trabalharem. Agora distribuimo-lo a todos os directores de Finanças gratuitamente. Considera que há necessidade de apostar mais na ética e deontologia profissional? Em Portugal dificilmente aconteceriam problemas como os que se verificaram com a Enron ou com a Parmalat, porque temos um sistema de responsabilidades repartidas. Penso que as pessoas que exercem a profissão há muito tempo terão alguma dificuldade em se adaptar, mas os problemas são poucos. O nosso conselho disciplinar tem apenas cerca de 200 processos por ano. Quais os seus objectivos para o próximo triénio? Serão anunciados na próxima segunda-feira. Mas tencionamos divulgar a instituição junto dos países lusófonos e consolidar o que já está feito. Outra questão importante a rever é a carga horária dos cursos afectos a esta especialidade, já que a fiscalidade, por exemplo, é cada vez mais importante. Mas o meu lema vai ser crescer e consolidar. Não em número, mas em qualidade. Há desemprego entre os TOC? A taxa não é tão elevada como noutras áreas, o mercado alargou e absorveu uma parte significativa de profissionais, mas não é elástico. E para os que vão saindo para a reforma pensamos criar uma casa de repouso para quem não tenha condições familiares e estamos também a preparar um fundo para constituição de reformas. São iniciativas que estão a andar e serão consolidadas nos próximos anos. O Senhor da CTOC António Domingues de Azevedo fez parte da comissão instaladora da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (CTOC) e está ligado à instituição desde 1996. Apaixonado pela contabilidade, tem-se dedicado a promover a evolução da profissão, com especial atenção para as questões de ética e deontologia. Já cumpriu dois mandatos como presidente da CTOC e prepara-se para concorrer ao terceiro, nas eleições marcadas para 10 de Dezembro próximo. No momento em que se realizou esta entrevista, não havia ainda outras listas concorrentes, para além da sua. Um facto que lamenta, já que «da diversidade de opiniões e projectos há sempre alguma coisa a ganhar». Observador atento da realidade fiscal do País, não poupa críticas à Administração Fiscal que, diz, insiste em não trazer para o sistema os contribuintes que dele continuam afastados, acabando por prejudicar os que «mal ou bem vão cumprindo com as suas obrigações».