PT25164 – Trespasse de sociedade por quotas
29-06-2020
Determinada sociedade por quotas adquiriu estabelecimento comercial mediante um contrato de trespasse de uma outra sociedade por quotas, contrato este que tem o valor de 20 mil euros mais IVA. Este contrato foi sujeito a imposto de selo de cinco por cento (mil euros).
Solicitado esclarecimento à entidade que presta apoio jurídico à entidade trespassária (adquirente) sobre a isenção deste contrato em sede de IVA conforme o n.º 4 do artigo 3.º do CIVA, foi esclarecido que, uma vez que existe direito contrato de arrendamento, este contrato estará assim sujeito a IVA.
Face a este esclarecimento, cai a não sujeição ao abrigo do n.º 4 do artigo 3.º e n.º 5 do artigo 4.º do CIVA. Deve obrigatoriamente de existir a emissão de fatura do valor do trespasse no valor de 20 mil euros mais IVA? Com esta sujeição em IVA, e tendo em conta o n.º 2 do artigo 1.º do imposto do selo, o valor de mil euros deixa de fazer sentido?
Em relação ao registo contabilístico, como deve ser considerado o valor do IVA? Esta compra pode ser equiparada a prestação de serviços?
Determinada sociedade por quotas adquiriu estabelecimento comercial mediante um contrato de trespasse de uma outra sociedade por quotas, sendo que este contrato contempla o direito ao arrendamento e foi, consequentemente, sujeito a imposto do selo. Questiona sobre a aplicabilidade da não sujeição a IVA prevista no n.º 4 do artigo 3.º do Código do IVA e sobre o registo contabilístico desta aquisição.
São factos sujeitos a imposto nesta verba, os trepasses de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola, as subconcessões e trespasses de concessões feitos pelo Estado, pelas regiões autónomas ou pelas autarquias locais, para exploração de empresas ou de serviços de qualquer natureza.
A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) considera que para se verificar a sujeição o trespasse terá de integrar o direito ao arrendamento urbano não habitacional.
Nesta verba do imposto do selo cabem as cedências a título definitivo e nesta noção de trepasse, na determinação do valor, a civilística é diferente da contabilística, na primeira é considerada pelo valor bruto, e na segunda pelo valor líquido (ativos-passivos, ambos determinados pelo justo valor).
São sujeitos passivos do imposto, o trespassante, nos trespasses de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola, alínea q) do n.º 1 do art.º 2.º. O encargo do imposto fica a cargo, do adquirente dos direitos, n.º 1 e alínea v) do n.º 3 do art.º 3.º. O momento da obrigação é o da assinatura do contrato, alínea a) do art.º 5.º.
O valor do contrato segue a regra geral do n.º 1 do art.º 9.º, e é o valor do contrato, verba 27. A taxa é de cinco por cento, verba 27.
Se analisarmos a tabela geral verificamos que esta tributa realidades de duas naturezas distintas. Ou tributa os negócios e realidades jurídicas ou económicas, independentemente da sua forma (o imposto do selo é devido pelo negócio ou operação económica e varia, normalmente em função do seu valor), ou tributa a declaração escrita dessas realidades (o imposto do selo é devido pela existência do documento e corresponde, normalmente, a um valor fixo por cada exemplar original).
Significa dizer que, quando está em causa o selo da operação, para que esta seja tributada não é indispensável que exista documento escrito, bastará que, por qualquer meio, se demonstre que a operação existe. Se o selo diz respeito ao documento, é indispensável que este exista na forma escrita e satisfaça todos os requisitos previstos na tabela geral.
O que o n.º 2 do artigo 1.º exclui é o imposto de selo da operação se esta também estiver sujeita a imposto sobre o valor acrescentado e não o selo do documento. Vejamos, um contrato de arrendamento, independentemente de revestir ou não a forma escrita, está sujeito a imposto do selo pela verba dois da tabela geral. Ora, porque se trata de um selo da operação, este não será devido se o senhorio debitar IVA nas rendas nos termos do Código do IVA, designadamente o seu artigo 12.º.
Os trespasses, enquanto negócios jurídicos ou operações, estão sujeitos a imposto do selo nos termos da verba 27 da tabela geral (cinco por cento sobre o seu valor) se a título oneroso, e na verba 1.2 (dez por cento sobre o valor) se a título gratuito. Como se trata de selo da operação e não de selo do documento a sua tributação em imposto do selo pode ser afastada nos termos do n.º 2 do artigo 1.º do CIS se se comprovar que os trespasses são «operações sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado e dele não isentas.»
Perante isto, em primeiro lugar, haverá que analisar se o trespasse é uma operação sujeita a IVA ou não. Durante muitos anos se entendia que sendo o trespasse sujeito a IVA, não seria sujeito a imposto do selo.
Contudo, desde o momento em que se entendeu que o trespasse seria sempre sujeito a imposto do selo desde que contemplasse o direito ao arrendamento, então, deixou de se considerar a tal dependência face à sujeição a IVA.
Entendemos que, no Código do IVA, não existe o mesmo raciocínio, isto é, a verificação das condições de incidência do IVA, ou de exclusão na sua aplicação, não estão dependentes da incidência e/ ou sujeição a imposto do selo.
Pelo que, importa averiguar, se o contrato de trespasse em análise, se enquadra, ou não, na não sujeição a IVA prevista no n.º 4 do artigo 3.º do Código do IVA, enquadramento que será efetuado independentemente da sujeição deste contrato a imposto do selo.
O artigo 19.º, primeiro parágrafo, da diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de novembro, usualmente designada por diretiva IVA, concede a possibilidade aos Estados-membros de estabelecerem que a transmissão de uma universalidade de bens ou parte dela não é considerada uma transmissão de bens. Daqui resulta que, quando um Estado-membro tenha feito uso desta faculdade, aquela transmissão não é considerada uma transmissão para efeitos do IVA e, consequentemente, não é sujeita a imposto.
Ao abrigo do segundo parágrafo da mesma disposição, e a fim de evitar distorções de concorrência, os Estados-membros podem excluir da aplicação desta regra de não sujeição as transmissões de uma universalidade de bens a um adquirente que não seja considerado sujeito passivo, nos termos da diretiva, ou que apenas atua como tal em relação a uma parte das suas atividades. Por sua vez, o artigo 29.º da Diretiva IVA manda aplicar o disposto no seu artigo 19.º, nas mesmas condições, às prestações de serviços.
O conceito de «transferência de uma universalidade de bens ou parte dela» já foi interpretado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nomeadamente no Acórdão proferido, em 27 de novembro de 2003, no Processo C-497/01 (caso Zita Modes Sàrl contra Administration de L'enregistrement et des domaines) no sentido de que abrange «a transmissão do estabelecimento comercial ou de uma parte autónoma de uma empresa que inclui elementos corpóreos e, se for o caso, incorpóreos que, em conjunto, constituem uma empresa ou parte de uma empresa que pode prosseguir uma atividade económica autónoma, mas que não abrange a simples cessão de bens como a venda de stock de produtos.»
Como resulta das conclusões do advogado-geral do citado acórdão, o conceito da «”parte de uma universalidade de bens” não se refere a um ou mais elementos singulares que compõem o estabelecimento como um todo, mas sim a uma combinação deles que seja suficiente para permitir o exercício de uma atividade económica, mesmo que esta atividade seja apenas um ramo de atividade mais ampla de que esta tenha sido destacada.»
Este dispositivo de simplificação visa permitir aos Estados-membros facilitar as transmissões de empresas ou de partes de empresas, evitando sobrecarregar a tesouraria do adquirente através de um encargo fiscal excessivo que, de qualquer forma, ele viria a recuperar através da dedução do IVA pago a montante.
O Código do IVA acolheu a faculdade referida, prevendo o n.º 4 do artigo 3.º do Código do IVA, que «(…) não são consideradas transmissões as cessões a título oneroso ou gratuito do estabelecimento comercial, da totalidade de um património ou de uma parte dele, que seja suscetível de constituir um ramo de atividade independente, quando, em qualquer dos casos, o adquirente seja, ou venha a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo do imposto de entre os referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º (…).»
O n.º 5 do artigo 3.º do Código do IVA esclarece que «(…) (p)ara efeitos do número anterior (n.º 4 do artigo 3.º), a administração fiscal adota as medidas regulamentares adequadas, nomeadamente a limitação do direito à dedução, quando o adquirente não seja um sujeito passivo que pratique exclusivamente operações tributadas (…).»
E o n.º 5 do artigo 4.º do Código do IVA prevê, também, que o «(…) disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 3.º é aplicável, em idênticas condições, às prestações de serviços (…).»
O n.º 4 do artigo 3.º do Código do IVA, traduz-se, portanto, numa delimitação negativa da incidência do imposto, que abrange as cessões a título definitivo da totalidade (ou de parte) de um património, que poderão englobar quer a cedência de elementos corpóreos quer de incorpóreos, recorrendo, para estes, à aplicação, em simultâneo, do disposto no n.º 5 do artigo 4.º, o qual manda aplicar, «em idênticas condições», às prestações de serviços o disposto naquele artigo, na medida em que a cedência de direitos consubstancia uma prestação de serviços, nos termos do Código do IVA, por força do conceito de «transmissão de bens» prevista no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IVA e do caráter residual do conceito de prestação de serviços previsto no artigo 4.º.
As disposições do n.º 4 do artigo 3.º e n.º 5 do artigo 4.º supra identificadas consagram, deste modo, um regime excecional dentro da mecânica do imposto sobre o valor acrescentado, consubstanciando medidas de simplificação, cujo objetivo é não criar obstáculos à transmissão de realidades empresariais no seu todo ou, pelo menos, dos seus elementos destacáveis como unidades independentes.
A existência desta norma tem como fundamento, quer a continuidade do exercício da atividade transferida, quer a irrelevância que a tributação dessa transmissão teria ao nível da economia do imposto, isto é, sendo o adquirente um "sucessor" do transmitente o imposto que viesse a ser liquidado conferiria ao primeiro, nos termos do artigo 19.º e seguintes do Código do IVA, direito à dedução, sendo o resultado equivalente ao que se consegue com esta norma de exclusão de tributação.
No entanto, apenas está em condições de beneficiar da não sujeição a imposto a transmissão de um todo, ou parte de um todo, que constitua de per si uma atividade de negócio autónoma e independente, que reúna os elementos indispensáveis ao desenvolvimento dessa atividade por parte do adquirente, sendo assim possível, numa ótica de continuidade, manter e desenvolver a atividade subjacente à unidade alienada.
Neste contexto e tendo presente a letra da lei, considera-se que uma operação é enquadrável no âmbito da citada norma de delimitação negativa da incidência do imposto, se se verificarem, cumulativamente, os seguintes pressupostos:
- Existência de uma cessão a título definitivo;
- O objeto da transmissão consistir num conjunto de ativos suscetíveis de permitir o prosseguimento de uma atividade económica independente; e
- O adquirente ser ou vir a ser sujeito passivo de imposto de entre os referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, que tenha a intenção de explorar o estabelecimento ou parte de património e não simplesmente liquidar a atividade ou vender os stocks.
No caso em análise, considerando que está em causa a transmissão de um conjunto de elementos que permitem a quem os adquire o desenvolvimento de uma atividade económica, que o adquirente é, ou virá a ser um sujeito passivo deste imposto, consideramos poder ser aplicável a não sujeição a IVA. Não obstante, para maior segurança, sugerimos que a questão seja objeto de pedido de informação vinculativa, nos termos previstos no artigo 68.º da Lei Geral Tributária.
Tratando-se de uma operação não sujeita a IVA não é obrigatória a emissão de uma fatura (podendo a mesma ser emitida se assim o entenderem). Todavia, sugere-se que os documentos de suporte para o trespasse contenham os todos os elementos previstos no n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA.
Os procedimentos contabilísticos para as concentrações de atividades empresariais estão previstos na Norma Contabilística e de Relato Financeiro (NCRF) n.º 14 - Concentrações de atividades empresariais.
Esta norma prevê o método da compra, definindo que as aquisições dos ativos adquiridos e o reconhecimento dos passivos e passivos contingentes assumidos, que sejam identificáveis, sejam reconhecidos pelos respetivos justos valores.
Neste método, quando exista uma diferença positiva entre o custo de aquisição da operação e os justos valores dos ativos e passivos e passivos contingentes identificáveis adquiridos, esta diferença deve ser contabilizada como um ativo (goodwill).
A partir do período iniciado em, ou após, 1 de janeiro de 2016, o goodwill adquirido numa concentração de atividades empresariais deve passar a ser amortizado, nos termos da NCRF 6 - Ativos intangíveis, no período da sua vida útil (ou em 10 anos, caso a sua vida útil não possa ser estimada com fiabilidade), conforme o parágrafo 46 da NCRF 14.
O custo de aquisição da concentração de atividade empresarial é o justo valor dos ativos e passivos entregues pela entidade adquirente para a realização dessa operação, acrescido dos encargos diretamente relacionados.
O custo de aquisição da concentração de atividade empresarial pode incluir apenas a quantia de dinheiro entregue ou a entregar no futuro, devendo ser efetuada uma avaliação aos justos valores dos ativos, passivos e passivos contingentes adquiridos no âmbito do contrato de trespasse.
Face ao enquadramento contabilístico referido, a entidade deveria ter iniciado por obter os justos valores de todos os ativos adquiridos e passivos e passivos contingentes assumidos no âmbito do contrato de trespasse.
Os justos valores dos ativos, passivos e passivos contingentes podem ser determinados pelo preço acordado entre as duas partes e que pode constar do anexo ao contrato de trespasse. O contrato de trespasse poderia indicar o valor individual de cada um dos itens transmitidos, porque ambas as partes envolvidas precisam dessa informação. O alienante precisa dessa informação para proceder ao desreconhecimento dos itens e respetivo cálculo das mais-valias e/ou menos-valias e a entidade adquirente também precisa dessa informação para o registo do valor de aquisição de cada um dos itens.
Se não tiverem sido acordados valores para os diferentes itens patrimoniais adquiridos e assumidos no contrato de trespasse, a entidade pode determinar esse justo valor através de valores de mercado ou outra técnica.
Com a obtenção desses justos valores dos ativos adquiridos e passivos e passivos contingentes assumidos no âmbito do contrato de trespasse pode proceder à determinação do goodwill.
O goodwill da operação é obtido pela diferença entre o custo de aquisição da operação de trespasse e o somatório dos justos valores dos ativos adquiridos e passivos e passivos contingentes assumidos.
O registo contabilístico do contrato de trespasse pode ser:
- Débito da conta 43x - Ativos fixos tangíveis, pelo justo valor determinado para os itens do ativo fixo tangível, e;
- Débito da conta 44x - Ativos intangíveis, pelo respetivo justo valor à data da operação;
- Débito da conta 31x - Compras, pelo justo valor determinado para os itens de inventários (por exemplo, mercadorias);
- Débito da conta 21x - Clientes, pela aquisição dos créditos de clientes avaliados ao justo valor na data de aquisição;
- Débito de outra conta de ativo, se for o caso, pelo respetivo justo valor determinado;
- Débito da conta 441 - Goodwill, se existir uma diferença positiva entre o custo de aquisição e os justos valores dos ativos adquiridos, passivos e passivos contingentes assumidos;
Por contrapartida a:
- Crédito da conta 22x - Fornecedores, pela assunção das dívidas de fornecedores (justo valor à data da aquisição);
- Crédito da conta 23 - Pessoal, pelos valores de férias e subsídio de férias dos trabalhadores cedidos;
- Crédito de outra conta de passivo, pela assunção de qualquer outro passivo ou passivo contingente relacionado com a operação de trespasse;
- Crédito da conta 12 - Depósitos à ordem, pelo valor pago pela operação de trespasse;
- (ou Crédito da conta 788 - Outros rendimentos e ganhos - Outros, se existir uma diferença negativa entre o custo de aquisição e os justos valores dos ativos adquiridos, passivos e passivos contingentes assumidos).
Conforme referido, este procedimento contabilístico deve ser realizado como se de uma compra normal de ativos se tratasse, pelo que, por exemplo, os ativos fixos tangíveis, adquiridos no âmbito do trespasse, passam a estar sujeitos a depreciações nos termos gerais da NCRF 7.
O valor reconhecido como goodwill (se existir) fica sujeito a amortizações em função da vida útil estimada para o estabelecimento comercial adquirido, ou de dez anos se não for possível determinar com fiabilidade essa vida útil.