Recordo-me de há cerca de 15 anos ter ido a uma consulta médica de rotina e me admirar com a cultura cívica do clínico que me atendeu. Na sala de espera do consultório figurava, para que não subsistissem dúvidas, uma mensagem a alertar os utentes para a «obrigatoriedade de passagem de recibo das importâncias recebidas», ao abrigo de um decreto-lei. Noutra ocasião, anos mais tarde, outro profissional liberal queria convencer-me de que a emissão de um «recibo» em nada me iria beneficiar, mas que a ele iria lesá-lo numa elevada percentagem. Obviamente que saí dos referidos locais com a factura no bolso e com uma leitura pessoal: é intrigante e incompreensível a forma como as pessoas, de um modo geral, encaram os seus deveres de cidadania.
A recente campanha publicitária lançada pelo Ministério das Finanças, chamada «Peça a factura se faz favor», é o mote ideal para voltarmos à carga com o que denominaríamos como educação para a cidadania e os valores. Alterem-se os vagos e generalistas conteúdos programáticos que são ministrados aos nossos alunos e introduzam-se matérias que tenham directamente a ver com o dia a dia destes (futuros) cidadãos contribuintes. O cultivar da educação cívica deve começar no banco das escolas, desde muito cedo. O nosso atraso, está bom de ver, é estrutural e, por isso, é preciso ir à raíz dos problemas. Lamentavelmente o sistema de ensino é um dos maiores falhanços dos quase 33 anos que levamos de democracia. As reformas que logram sair do papel, quase sempre ao sabor da conjuntura eleitoral, são cíclicas, incipientes e, pior do que isso, inconsequentes. A vertiginosa sucessão de governos que temos tido nos últimos anos em nada tem ajudado a implantar uma conjunto de políticas e reformas consistentes. Atente o leitor para o seguinte: só as áreas da educação, finanças e economia, sectores nucleares para a governação de qualquer país, tiveram, cada uma delas, cerca de uma dezena de ministros nos últimos 10/15 anos. Inconcebível e intolerável. O interesse nacional deve ser prioritário e, neste campo, os dois maiores partidos não têm sabido dar o exemplo. Resta-nos perspectivar o futuro, apostar nas gerações vindouras e confiar que os políticos ponham, de uma vez por todas, os olhos na educação para a cidadania. Que se previna em vez de remediar, a tendência fiscalmente «falcatrueira» de muitos dos nossos concidadãos. É tempo de alterar o paradigma. A campanha «Peça a Factura» é o pontapé de saída para inaugurar uma nova mentalidade. Enquanto os governos não perceberem isto, todos os actos pedagógicos serão insuficientes. Se quisermos, a longo prazo, obter o reverso daquilo que nos vai saindo do bolso (isto é, saúde condigna, educação moderna e de qualidade, segurança social para acautelar o futuro, etc) é preciso perceber que os impostos são para ser pagos. Por todos. Sem excepção. A atitude provinciana e de chico-espertismo de fugir à factura porque «vou ter de pagar o IVA» tem de ser erradicada. Os tributos fazem parte do valor que cada um de nós paga: seja na deslocação a uma garagem para reparação do automóvel, seja perante uma consulta a um profissional liberal, seja numa rotineira ida às compras no hipermercado. É do acto de pagar impostos ou fugir de forma cobarde e impune a essa obrigação decorrente da vida em sociedade, que depende o saber estar ou não em comunidade. Dessa postura, colaborante ou desafiante, depende fortemente a vitalidade cívica de um país.