Entrevista
Joana Barata Lopes, entrevista à provedora dos destinatários dos serviços
3 Outubro 2024
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«A batalha, sempre, pela justiça» é o seu lema de vida e que pretende nortear a sua missão na liderança do novo órgão da OCC. Na primeira entrevista desde que assumiu a função, Joana Barata Lopes dá a conhecer o funcionamento do provedor dos destinatários dos serviços.

 

Contabilista – A figura do provedor dos destinatários dos serviços é uma das mais importantes novidades do regime jurídico das ordens profissionais. Como reagiu ao convite, e posterior designação, por parte da bastonária, após proposta do conselho de supervisão, para assumir este cargo?

Joana Barata Lopes –
 Quando o convite me foi formulado senti um misto entre o entusiasmo e a responsabilidade. Ainda para mais sendo uma nova figura na orgânica da Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC), espero estar à altura do desempenho deste desafio e desta missão, correspondendo às expetativas criadas.  A criação deste órgão é também uma forma de a Ordem demonstrar à sociedade que se preocupa que esta profissão seja desempenhada da melhor maneira possível. Acompanhei de muito perto a construção do estatuto das várias ordens profissionais, depois de já o ter feito, anteriormente, em 2013, sempre enquanto deputada à Assembleia da República (AR), o que faz com que olhe, de forma duplamente relevante, para a importância destas entidades.

Apesar de ser uma personalidade independente, como prevê o estatuto, de que forma tem acompanhado a evolução da profissão e, já agora, que conhecimento tinha desta instituição e dos seus membros? 

Como disse anteriormente, comecei a exercer o cargo de deputada em 2011 e ao longo das várias legislaturas acompanhei de muito perto os vários processos relativos às associações públicas profissionais e o interesse público que têm como função defender. A OCC foi uma entidade que esteve, desde a primeira hora, particularmente ativa no acompanhamento do último processo de revisão de estatutos na AR – já com a lei-quadro tinha sido assim – com os seus dirigentes a demonstrarem que têm bem claro o que defendem: por um lado, aquilo que é a profissão e, ao mesmo tempo, tudo fazer para defendê-la na prossecução do interesse público. Todos reconhecem – até as pessoas com menos afinidades ou ligadas à profissão – que a evolução e o crescimento tem sido imenso, com conquistas tanto para os profissionais como para os próprios cidadãos que são utentes dos serviços de contabilidade. Garantir a dignificação constante da profissão e dos seus profissionais, sempre na defesa do interesse público e na prestação do melhor serviço, é um objetivo que está bem expresso, por exemplo, com a entrada em vigor das «férias fiscais». Isso é reconhecido, transversalmente, inclusive por pessoas sem ligação à Ordem. E é, precisamente, esta lógica de atuação que acaba por desembocar no papel do provedor dos destinatários dos serviços.

Integrou, na última legislatura, o grupo de trabalho parlamentar das ordens profissionais. A primeira proposta do estatuto apresentada pelo governo de então mereceu uma contundente reação por parte da bastonária da OCC. Como acompanhou, de uma forma geral, o conturbado processo de alteração dos estatutos das ordens profissionais portuguesas?

O processo foi mal gerido e pior conduzido. Enquanto deputada do grupo parlamentar do PSD, alertei para o escasso tempo que foi dado para as ordens refletirem sobre o conteúdo da primeira proposta apresentada, bem como para as lacunas materiais e formais do documento. Recordo bem que em 2013 existiam propostas de lei diferentes para cada um dos estatutos das ordens. Em 2023 foi feito tudo em conjunto, sem olhar às diferenças entre as várias associações públicas profissionais, o que não foi favorável para o processo legislativo. Este processo atabalhoado vai ao encontro com a perceção que, aqui e ali, existe na sociedade que as ordens são elementos dispensáveis. E não são. No fundo, acabam por suprir a manifesta incapacidade do Estado para garantir o interesse público das profissões. Em suma, foi uma pena o processo ter corrido assim, até porque considero fundamental a forma como regulamos a nossa sociedade do ponto de vista das profissões.

Durante este longo processo, o debate sobre a extinção de algumas ordens profissionais voltou a ser tema de conversa…

De facto, não deve haver ordens para todas as profissões. Pelo menos para mim isso é claro e assumi-o na minha função enquanto deputada. Inclusive o meu grupo parlamentar votou contra as últimas duas ordens que foram criadas, argumentando que, nesse caso concreto, o Estado era bastante para garantir a defesa do interesse público. Ainda sobre o processo legislativo, permita-me referir que a OCC era, notoriamente, a entidade que melhor preparada estava, e isso viu-se no modo, mesmo a correr contra o tempo, como analisou as propostas enviadas pelo governo, nas reuniões que manteve com os grupos parlamentares e até nas audições que foram feitas pelo grupo de trabalho. Foram meses muito intensos e eu, enquanto legisladora que era, só posso agradecer o empenho que esta e outras ordens tiveram para termos uma melhor perceção do processo legislativo.

Com a obrigatoriedade deste órgão, o Estado não demonstra alguma desconfiança face ao rigor e deontologia das ordens profissionais, com vista à prossecução do interesse público?

Não, eu interpreto de modo contrário. Com a introdução deste órgão, são as próprias ordens que transmitem aos destinatários dos serviços que têm uma figura a quem podem recorrer. E é a assunção que a própria associação pública quer a profissão o mais séria e rigorosa possível. Do conhecimento que já tenho desta Ordem, ainda antes da existência do órgão do provedor já existia a vontade de melhorar os procedimentos internos tendo em vista proporcionar o melhor serviço possível e com esta prática promover a importância e a qualidade dos seus profissionais. Em termos práticos, no caso vertente da OCC, o provedor acabou por reforçar ou institucionalizar uma lógica de ação que já existia.

O facto de não ter poder decisório acaba por limitar a sua função?

Não creio. O provedor é uma personalidade independente que tem a função de avaliar e analisar o que lhe chega, usando os vastos mecanismos que a Ordem dispõe. Mas o que me parece fundamental é que a sociedade sabe que a OCC, e as ordens em geral, têm um órgão a quem podem recorrer se tiveram algo a apontar ao serviço prestado. Se tiver de atuar disciplinarmente, o provedor reencaminha o assunto para o órgão competente. Mas sempre garantindo que existirá um trabalho prévio entre o provedor e a mediação e só depois é que se concluirá ser ou não esse o caminho adequado. Não se pode tomar uma decisão dessas de ânimo leve e se não tiverem sido analisados os contornos que a situação configura.

A análise ao teor das queixas, por parte do provedor, pode não ser a mais correta e precisa por ser um elemento externo à profissão e também pela tecnicidade associada?

Como disse, conto com o background e o conhecimento técnico dos serviços e dos colaboradores da Ordem para me auxiliarem, sempre que necessário. Aliás, nos emails que tenho recebido, o provedor faz o acompanhamento do início ao fim de cada exposição, não obstante ter reencaminhado a mensagem para o serviço da Ordem com a competência específica. Por isso, esta permanente articulação é fundamental.

O email é o suporte preferencial de contacto com a provedora ou existe a possibilidade de o destinatário dos serviços solicitar uma reunião presencial?

O email provedor@occ.pt é a via preferencial de contacto.  Após análise da exposição, a mesma é reencaminhada para o serviço competente. Mas se o destinatário dos serviços entender que o melindre ou delicadeza do caso assim o exige, estou disponível para reunir presencialmente com quem solicitar. Basta que formalize essa vontade.

Independentemente do teor das queixas escritas, para além de factuais, fundamentadas e sólidas, sugere algum tipo de abordagem específica?

O email, por ser o primeiro contacto, não precisa de ser complexo. Necessita apenas de ser o mais claro e direto possível, como se estivesse a relatar a alguém o que se passou. Já recebi emails com formatos diferentes. Mas, o essencial é que façam uma descrição geral, identificando o alegado dano causado por um ou por uma contabilista. O que não constar na primeira informação, será pedido a posteriori pelos serviços da OCC, seja a contextualização adicional ou o pedido para anexar documentos, para darem mais robustez à análise técnica.

Qual o teor das exposições que chegaram até si desde que tomou posse, em julho?

Há que dizer que, entretanto, meteram-se as férias e do contacto que tenho mantido com o conselho diretivo, concluímos que, de uma forma geral, os utentes ainda não conhecem a figura do provedor. O que é normal. Esta entrevista é apenas mais um mecanismo para fazer chegar a informação às pessoas. E é importante passar a seguinte mensagem: este órgão não é contra os contabilistas certificados, é a favor de uma profissão e de profissionais que querem sempre fazer o melhor possível. Os emails que recebi, de um modo geral, têm sido reencaminhados. Tenho também recebido emails de contabilistas em nome de clientes, ou seja, os destinatários dos serviços, dando conta que existe um diferendo entre o profissional “X” e o cliente “Y”. Neste caso concreto, a mensagem segue para a mediação de conflitos. Ainda assim, e sempre que entra através do meu email, fico sempre ao corrente sobre o percurso e a resolução desta mensagem. Outros casos que também recebo com frequência, dizem respeito a relatos de pessoas que sentem que foram lesadas pelo contabilista – ou por não conseguirem entrar em contacto com ele, ou por ele não ter informado o cliente da data dos prazos para cumprir as obrigações.


É possível um contabilista fazer queixa de um outro colega, nomeadamente ao nível do dever de lealdade?

Não é, objetivamente, o escopo deste órgão. Mas posso garantir que toda a informação que entrar na caixa de email do provedor será tida em consideração. No limite, uma das atribuições deste órgão é contribuir, tanto quanto possível, para o melhor funcionamento da Ordem enquanto entidade que regula a profissão.

Está estabelecido um prazo para dar resposta as essas reclamações?

Para já, não há prazos definidos, mas posso garantir que ninguém ficará muito tempo à espera. Eventualmente, se o fluxo de mensagens aumentar, poderá haver essa necessidade. Mas é preciso referir que este órgão começa da estaca zero e ainda estamos a trabalhar nos regimentos internos.
No I Fórum das Ordens Profissionais, realizado em maio, a Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral alertou para a eventualidade de existir a colisão de funções ou duplicação de reclamações que chegam ao seu órgão e às ordens através dos destinatários dos serviços, que também são cidadãos.

Admite a necessidade de articular com a Provedoria de Justiça a canalização de todas as queixas para a entidade associativa, até para uma mais expedita resolução do problema? 

Acho que é uma não questão. Para ser franca, não vislumbro que haja aqui colisão. Do ponto de vista dos destinatários dos serviços, que é de quem estamos a falar, se a reclamação vier para a Ordem a instituição atuará, de forma célere e eficaz, sobre quem tiver de o fazer. No limite, caso o Provedor de Justiça tenha alguma coisa que seja suscetível de atuação sobre o contabilista certificado terá sempre de reencaminhar o caso para os órgãos próprios.

Confia que será o princípio da subsidiariedade a prevalecer e não haverá conflito de competências?

Estou certa de que não haverá conflito de competências. Estamos todos a trabalhar para o mesmo: os destinatários dos serviços. Para as pessoas, que são o que verdadeiramente importa, o fundamental é que foi decidido pela AR que a salvaguarda e proteção dos seus direitos tinham de ter uma figura que garantisse a qualidade dos serviços a que recorrem.

Esteve durante várias legislaturas como deputada na AR. Em que medida é que a sua experiência política pode ajudá-la a melhor desempenhar este cargo?

É, certamente, uma mais-valia o acompanhamento próximo que fiz ao nível parlamentar da regulamentação de profissões, da regulação de profissões através das associações públicas profissionais, as formas de acesso, a defesa do interesse público, etc. É esta experiência acumulada que me dá um conhecimento particular no modo de refletir e pensar sobre a melhor forma de construção e organização a sociedade, e neste caso particular, das profissões. À margem deste meu cargo na OCC, também sou autarca numa junta de freguesia de Lisboa, onde exerço as funções de tesoureira, e confesso que tenho sentido na pele não existir regulamentação ao nível da contabilidade pública. A figura do contabilista público ainda não saiu do papel, por não existir regulamentação.  Quando assumimos funções na junta, que gere um orçamento de aproximadamente 10 milhões de euros, não tínhamos ninguém nos quadros que fosse contabilista certificado. E a lei permite que assim seja.

E como é que contornaram esse obstáculo?

Tivemos de usar os nossos escassos recursos para contratar uma empresa de contabilidade – por uma questão de garantia e segurança, para eleitos e eleitores. A contabilidade desta e de outras autarquias é a contabilidade do Estado e também dos próprios munícipes e dos seus impostos. Não consigo perceber como é que isto não é uma necessidade, na qual devemos estar todos concentrados.

Afirmou, numa entrevista ao "Diário de Notícias", em 2011: «Ser político é como ter cadastro». Como é que se altera esta imagem cada vez mais presente na sociedade?

Essa era uma frase muito usada pelo presidente da Câmara Municipal de Cascais, Carlos Carreiras.  Há, de facto, um aproveitamento da ideia de que os políticos são todos má rês. E da construção dessa imagem há um aproveitamento, inclusive, pelos próprios políticos, nomeadamente por iniciativa das forças políticas ditas mais populistas ou com posições mais extremadas. Para mim, isto é perturbador, visto que não dignifica, bem pelo contrário, aquilo que fazemos. Por isso, entendo que quem não se dá ao respeito, não merece ser respeitado. Respondendo em concreto à pergunta, deve reforçar-se, ainda mais, o escrutínio, prevenindo eventuais abusos, e colocando o enfoque em componentes muito mais básicas. Repare o seguinte: exercer um qualquer cargo político é uma honra imensa. A política é feita de escolhas, que representam uma oportunidade para tomar decisões com vista ao bem comum. E tomar decisões implica sempre que há quem não goste ou se sinta prejudicado. E é esta compreensão que todos os atingidos por estas escolhas devem ter, concordando ou não com as decisões. Todos fazemos política em todo o momento. Debater com alguém sobre algo em que acreditamos é positivo. Desde que se respeite o que o outro ou os outros pensem. Ter pontos de vista distintos é uma conquista maior da liberdade que nunca podemos colocar em causa.

Para finalizar, desafio-a a partilhar o seu lado mais pessoal. Tem formação na área de Filosofia. Qual vai ser a sua forma de estar neste projeto e qual o lema de vida que a move diariamente?

Sempre gostei muito de Filosofia e a licenciatura foi uma oportunidade para ter tempo para refletir. Permite-me conjugar a experiência político-partidária com a prioridade dada ao outro, considerando o seu enquadramento e as várias dimensões. E é esse equilíbrio, considerando que nunca nada é apenas «sim» ou «não», que deve ser colocado à análise e avaliação de qualquer situação com que me deparo. Um lema de vida? A batalha, sempre, pela justiça. O que é justo tem sempre de prevalecer. E as instituições servem para, em caso de necessidade, fazer prevalecer esse sentimento de justiça. E isso encaixa, perfeitamente, na missão do provedor do destinatário dos serviços. 

Entrevista: Nuno Dias da Silva | Fotos: Raquel Wise


PERFIL

Joana Barata Lopes nasceu a 16 de março de 1985, em Castelo Branco. Licenciada em Filosofia pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica, tem ainda frequência da licenciatura em Direito. Foi deputada do grupo parlamentar do PSD à Assembleia da República entre 2011-2019 e 2021-2024 na XII, XIII, XIV (parcialmente) e XV legislaturas, tendo desempenhado funções nas comissões parlamentares permanentes de Trabalho e Segurança Social, Educação e Poder Local, Administração Pública e Ordenamento do Território. Ao serviço destas comissões, destacou-se o trabalho na área do emprego jovem, novas formas de organização de trabalho, regulação e regulamentação de profissões. Tomou posse a 10 de julho como provedor dos destinatários dos serviços da OCC. É ainda tesoureira da Junta de Freguesia do Lumiar.


Esta entrevista faz parte da edição da Revista Contabilista 293, de setembro de 2024, que pode aceder aqui